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28/10/2003 - 02h58

Leituras Cruzadas: O ingrediente judaico

MOACYR SCLIAR
especial para a Folha de S.Paulo

Ao contrário do que se pensa, a presença judaica no Brasil data de longo tempo e é profundamente vinculada à história do país. Mostra-o uma série de livros recentemente publicados e que nos falam de uma experiência humana surpreendente, às vezes trágica, às vezes pitoresca, mas sempre comovente.

Fotos Arquivo Histórico Judaico Brasileiro
Loja localizada na rua São Caetano, Bom Retiro, em São Paulo (1946)
Essa longa trajetória tem suas raízes mais longínquas na dispersão judaica, um processo que se acelerou depois da conquista, pelos romanos, da antiga Palestina (a palavra, aliás, é de origem romana). A essa conquista, e diferentemente de outros povos, os judeus opuseram uma feroz e desesperada resistência que acabou sendo esmagada. Levados como escravos para Roma, os judeus espalharam-se por várias regiões do Império.

A península Ibérica foi um desses lugares. Há indícios de que os judeus lá viviam inclusive antes do domínio romano; o termo hebraico que designa a Espanha, Sefarad, já aparece no Antigo Testamento. Os judeus da região passaram a ser conhecidos como sefardis, ou sefaradis, ou sefarditas.

Nos primeiros tempos do cristianismo, o tratamento dos judeus pelos monarcas cristãos variava —períodos de perseguição alternando-se com outros de relativa tranquilidade. E então ocorre um fato de grande importância, que foi a invasão árabe da península (século 8º).

De maneira geral, os judeus apoiaram essa conquista, ainda que mais tarde, nas lutas entre cristãos e muçulmanos, tenham participado de ambos os exércitos. Na Espanha muçulmana, conheceram dias de esplendor intelectual —foi uma "Idade de Ouro" judaica, durando do século 9º ao 13.

A cultura árabe, que representava uma ponte entre a do Oriente e a do Ocidente, preservando inclusive a filosofia grega, influenciou muito os judeus, até mesmo em termos de idioma: a palavra "alfama", ou "aljama", que, na península Ibérica, designava o bairro judaico, é árabe. A figura exponencial nesse período foi Moisés ben Maimon (ou Musa ibn Maimon, ou Maimônides —reformas árabe e grega de seu nome).

Nascido em Córdova (1135), Maimônides era um famoso médico; um entusiasmado poeta da corte chegou a dizer que, se cuidasse da Lua, Maimônides "a livraria das manchas e até impediria que minguasse". Exerceu sua profissão não na Espanha, mas no Egito, onde se radicara com sua família, e chegou a ter entre seus clientes o sultão Saladino. Nos intervalos, escreveu várias obras sobre filosofia da religião, que surpreendem pela abertura e pela tolerância.

A medicina era uma das profissões a que os judeus se dedicavam na Idade Média. Mas eles também eram comerciantes e coletores de impostos e emprestavam dinheiro a juros, numa época em que os bancos não existiam. Essa era uma ocupação que facilmente atraía ódios e rancores e acabou tendo implicações religiosas: contatos entre judeus e cristãos foram proibidos, e a ordem dominicana, criada para combater heresias, tinha também o judaísmo em sua mira.

No final da Idade Média, surge a Inquisição, que, na Espanha, tinha como alvo principal não as heresias, mas os judeus e os muçulmanos. A quem, após a vitória dos reis católicos Fernando e Isabel, foi dado um ultimato: expulsão ou conversão.

Muitos judeus optaram por esta última alternativa, que, no entanto, não representava proteção segura. Não raro os chamados cristãos-novos eram investigados pela Inquisição sob a acusação de práticas "judaizantes". Essa acusação podia ser anônima; comprovada, poderia levar à execução do réu e, claro, ao confisco de seus bens.

Em 1492, ano da descoberta da América, os judeus foram expulsos da Espanha. Muitos dirigiram-se para Portugal, onde foram aceitos mediante o pagamento de altas somas. Mais tarde, e sob pressão dos reis católicos, o soberano português, dom Manuel, determinou que os judeus fossem compulsoriamente batizados. Mas, como na Espanha, havia suspeitas em relação aos chamados cristãos-novos.

Em 1536, foi instalado o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição. A partir daí, somente seriam aceitos para cargos públicos "homens fidalgos de limpo sangue". Criou-se um clima de suspeição, de delação, de intriga, que, em contrapartida, gerou na comunidade judaica a incerteza, a necessidade da dissimulação, as expectativas messiânicas: essa é a época dos chamados "falsos messias", que anunciavam, aos desesperados judeus, o fim dos tempos e o advento do Messias.

O desenvolvimento do mercantilismo e a perspectiva das descobertas marítimas, com a ascensão da burguesia, colocou em cheque o mundo feudal e, ao mesmo tempo, abriu perspectivas para os judeus detentores do dinheiro necessário para financiar as expedições marítimas.

Colombo recebeu o apoio de financistas judeus, recrutou cartógrafos e navegadores judeus. Em Portugal, igualmente, judeus estavam envolvidos com as expedições marítimas ao Novo Mundo.

As terras recém-descobertas representavam, para esse grupo de perseguidos, oportunidade e esperança: oportunidade de progresso material, esperança de maior liberdade. Já em 1501, um grupo de cristãos-novos, encabeçado por Fernão de Noronha, tinha obtido da Coroa portuguesa uma concessão para a exploração do novo território —um "contrato de risco" da época.

Os judeus podem ter sido responsáveis pela introdução da primeira cultura brasileira, a cana-de-açúcar, e sua industrialização, com os engenhos.

Grande parte dos judeus chegaram ao Brasil na condição de degredados. Essa é a história que Geraldo Pieroni conta em "Banidos: a Inquisição e a Lista dos Cristãos-Novos Condenados a Viver no Brasil" (Bertrand Brasil, 288 págs., R$ 29).

Pieroni, professor de história, fez exaustivas pesquisas no famoso arquivo da Torre do Tombo (Lisboa), onde estão guardados os processos inquisitoriais. Mostra que, também no Brasil, o longo braço da Inquisição alcançou os cristãos-novos suspeitos de práticas judaizantes.

As visitações do Santo Ofício começam em 1591, inaugurando um período de denúncias, de perseguições, de torturas e de execuções. Diz Pieroni: "A vida cotidiana dos cristãos-novos era rigorosamente vigiada. Todos eram suspeitos de judaísmo". E as suspeitas poderiam nascer de detalhes; por exemplo, trocar de camisa numa sexta-feira, véspera do "shabat" judaico.

Os processos inquisitoriais eram basicamente os mesmos, mas os condenados não eram executados no Brasil: Antônio José, "o judeu", o primeiro grande dramaturgo brasileiro, foi queimado na fogueira em Lisboa. Algumas pessoas lutaram corajosamente contra esta perseguição, entre elas o padre António Vieira. E, durante a breve ocupação holandesa do Nordeste, os judeus puderam assumir sua identidade, construindo inclusive uma sinagoga no Recife; sobre as ruínas desta, existe hoje um interessante museu.
Tanto em Portugal como no Brasil surgiu uma peculiar imagem dos judeus, imagem essa que o grande mestre Luís da Câmara Cascudo analisou no clássico "Mouros, Franceses e Judeus: três presenças no Brasil" (Global, 110 págs., R$ 28), recentemente reeditado. A imagem traduz-se inclusive em frases e expressões típicas: "Judeu só não engana a morte", "Judeu surrado, mas lucrado". E a palavra "judiaria", mesmo em nossa época de termos politicamente corretos, continua sinônimo de malvadeza, sadismo, perversidade.

De outra parte, costumes judaicos incorporaram-se à cultura brasileira, como é o caso de sangrar inteiramente o gado abatido, como é definido pelas leis religiosas.

No final do século 18, a situação muda. Por iniciativa do marquês de Pombal, autoritário mas esclarecido político, a monarquia portuguesa decreta o fim da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos. A Inquisição é praticamente desativada. A partir daí, diz Câmara Cascudo, "o judeu dissolveu-se no sangue nacional, pelo casamento (...), pela conquista social nas áreas econômicas". Uma assimilação completa, tanto mais que os sobrenomes judeus são indistinguíveis de outros sobrenomes portugueses.

Novos fluxos migratórios judaicos para o Brasil ocorreriam no século 19. Com a liberal política de "abertura dos portos", um pequeno número de judeus chegou ao Rio e a Salvador. A partir da segunda década do mesmo século, judeus marroquinos, em maior número, dirigiram-se para a região Norte, sobretudo para Belém e Manaus.

No fim do século 19, judeus alsacianos estabeleceram-se no Rio, especializando-se no comércio de jóias e de artigos de luxo. Era a época de dom Pedro 2º, monarca tão interessado em judaísmo que chegou a aprender hebraico, idioma no qual se dirigiu a um grupo de alsacianos recém-chegados (que, a propósito, nada entenderam da saudação: hebraico não é para qualquer um).

O século dos 800 viu grandes movimentos migratórios do Velho Mundo para a América. De uma Europa empobrecida, devastada por guerras e conflitos étnicos, milhões de pessoas atravessavam o oceano, nos navios de emigrantes que Lasar Segall tão pungentemente retratou. Vinham em busca do sonho americano, simbolizado, no porto de Nova York, pela Estátua da Liberdade (em cujo pedestal, aliás, estão gravados os versos da poeta judia Emma Lazarus: "Dá-me teus exaustos, teus pobres/ tuas confusas massas que por ar livre anseiam").

Loja de tecidos em Franca (SP)
Na América Latina, continente então escassamente povoado, os imigrantes eram favorecidos por uma política sintetizada na frase do intelectual argentino Juan Alberdi: "Governar é povoar". Colonos eram trazidos pelas companhias de imigração; no caso dos judeus, tratava-se da Jewish Colonization Association (conhecida pela sigla JCA ou pela ICA), criada por filantropos da Europa Ocidental.

A ICA trabalhava com os judeus da Europa Oriental (Rússia, Polônia), então confinados em pequenas e pobres aldeias, sempre sujeitos a perseguições e massacres. Eles eram levados para a Argentina e para o Rio Grande do Sul. Nesse Estado, a imigração completará, em novembro de 2004, seu centenário.

Essa história, narrada por Isabel Rosa Gritti em "Imigração Judaica no Rio Grande do Sul" (Martins Livreiro, 154 págs., R$ 14), não pode ser considerada inteiramente bem-sucedida: os recém-chegados, em sua maioria artesãos, não estavam familiarizados com as lides agrícolas e não receberam da ICA o apoio que esperavam. Seguindo a tradicional tendência do êxodo rural, breve estavam se dirigindo para as cidades da região (Passo Fundo, Santa Maria, Erechim) e, sobretudo, para Porto Alegre.

Como mostram Henrique Veltman ("A História dos Judeus em São Paulo", 162 págs, R$ 20, e "A História dos Judeus no Rio de Janeiro", 180 págs., R$ 20, ambos da editora Expressão e Cultura) e Rachel Mizrahi ("Imigrantes Judeus do Oriente Médio: São Paulo e Rio de Janeiro", Ateliê Editorial, 330 págs., R$ 70) foi nas grandes cidades que as comunidades judaicas mais se desenvolveram, quer se tratassem de sefaradis vindos do Oriente Médio, quer se tratassem de asquenazes, vindos da Europa Oriental (e que, em sua maioria, falavam o iídiche, dialeto que mistura alemão com hebraico e palavras eslavas). A estes, mais tarde, juntaram-se os refugiados do nazismo, entre eles intelectuais como Stefan Zweig e o dramaturgo Fritz Oliven.

A vida dos recém-chegados era bastante dura. Em geral, procuravam viver juntos, em bairros como o Bom Retiro (São Paulo) e o Bom Fim (Porto Alegre). Dedicavam-se ao pequeno comércio, à venda a prestações (que precedeu os crediários) e ao comércio ambulante de gravatas, por exemplo. Um samba gravado por Adoniran Barbosa começa assim: "Jacó/ o senhor me prometeu/ uma gravata e até hoje ainda não deu...".

A carência material era compensada pelo forte espírito comunitário, graças ao qual era possível manter escolas, clubes, asilos, cemitérios. Aos poucos, foram ascendendo na escala social, desenvolvendo atividades em ramos como o grande comércio, a construção civil, a indústria. Os filhos iam a universidades e tornavam-se médicos, engenheiros, advogados, jornalistas. O que facilitou o processo de integração na sociedade brasileira.

Anti-semitismo pode existir, e existe, mas está longe de se constituir no problema que representou em outros países. O Brasil é o legítimo "melting pot", um caldeirão de misturas culturais. Nesse caldeirão, o judaísmo é um ingrediente que entra em pequena quantidade, mas que nem por isso deixa de dar ao prato um sabor especial.

Moacyr Scliar, 66, autor de 68 livros, é membro da Academia Brasileira de Letras e colaborador da Folha. Descendente de judeus vindos da Rússia, escapou da Inquisição, mas levou alguns sustos à época do regime militar. Faz da experiência de imigração um componente importante em sua literatura.

Saiba mais: Exposição "Partindo para o Brasil - Imigração Judaica em São Paulo", no Memorial do Imigrante, até 16 de novembro; tel. 0/xx/11/228-8769; na internet, em www.memorialdoimigrante.sp.gov.br/Realizad/Judaico.html.


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  • Leia trecho de "Imigrantes Judeus do Oriente Médio"

         

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