Folha Online sinapse  
28/10/2003 - 02h57

Leia trecho de "Imigrantes Judeus do Oriente Médio"

da Folha de S.Paulo

Leia abaixo o prefácio e a introdução de "Imigrantes Judeus do Oriente Médio: São Paulo e Rio de Janeiro" (Ateliê Editorial, 330 págs., R$ 70), de Rachel Mizrahi, livro comentado na seção "Leituras Cruzadas" do Sinapse de 28 de outubro de 2003.

Prefácio

O estudo Imigrantes Judeus do Oriente Médio: São Paulo e Rio de Janeiro, de Rachel Mizrahi, inaugura uma nova etapa na historiografia brasileira sobre imigração judaica, aqui interpretada como um fenômeno múltiplo. Múltiplo se avaliado segundo o fluxo de grupos culturais distintos: asquenazis, sefaradis, orientais e outros grupos menores. Os imigrantes aqui apresentados não formam um grupo monolítico, homogêneo, indiferenciado. Suas trajetórias são distintas, assim como suas estratégias de sobrevivência, ainda que vinculadas ao lugar de origem.

Este livro recupera, em especial, a memória dos imigrantes judeus oriundos das regiões árabes e dos sefaradis que, a partir de 1492, haviam se instalado em terras do Império Otomano. O fato de Rachel Mizrahi ser filha de imigrantes judeus do Oriente Médio, lhe garantiu critérios de observação participante, contato direto e pessoal com os sujeitos da história. Neste sentido, podemos considerar que esta publicação é, antes de mais nada, expressão do sentido de pertencimento e do compromisso da autora com a comunidade de seus pais, matrizes de sua inspiração e protagonistas desta história.

Como orientadora e colega de pós-graduação de Rachel Mizrahi, tive a oportunidade de acompanhar sua trajetória de pesquisadora que, de forma vibrante, investiu na construção da memória individual e coletiva da comunidade judaica brasileira. Durante estes anos todos tivemos em comum o mesmo objeto de estudo — o povo judeu na Diáspora — e a mesma escola. Sua formação de pós-graduanda se fez, assim como a minha, enquanto discípula de Anita Novinsky que desde a década de 1970 é responsável junto a Universidade de São Paulo pela formação de um grupo de historiadores dedicados a "mapear" a presença de cristãos-novos e judeus no Brasil, em diferentes tempos históricos. Seu doutorado, então sob a minha orientação, concentrou-se na reconstrução do processo de formação das modernas comunidades judaicas brasileiras, priorizando a presença dos judeus sefaradis e orientais em São Paulo e Rio de Janeiro. Neste sentido, podemos afirmar que formamos uma "escola", distinta por gerações, dedicada a discutir o tema da intolerância e da liberdade sob o viés da História das Mentalidades.

Em sua dissertação de mestrado — A Inquisição no Brasil: Um Capitão-mor Judaizante, Mizrahi reconstituiu, a partir da figura de Miguel Telles da Costa, a pequena comunidade de cristãos-novos judaizantes radicados na Capitania de "Nossa Senhora de Itanhaém, com sede na vila de Parati, conhecida como o porto do ouro". A reconstrução histórica, baseada em processos inquisitoriais, se fez em torno das relações sociais que envolviam a comunidade cristã-nova radicada no Rio de Janeiro, Minas Gerais e Parati na primeira metade do século XVIII1.

Continuando seus estudos sobre a história dos judeus em São Paulo e Rio de Janeiro, Mizrahi voltou-se para a sua própria comunidade: a dos judeus sefaradis e orientais que — assim como os cristãos-novos durante a época moderna — deixaram sua terra de origem em busca de melhores oportunidades de vida. Ambos os grupos, ainda que em períodos históricos distintos, vivenciaram processos de ruptura e (re)adaptação. O sentimento de desenraizamento emerge enquanto fenômeno que altera os sentimentos de identidade atrelado a idéia de "perda": perda da família, de bens, costumes etc. É aqui que a pintura e a fotografia cumprem a função de documentos-referência, tanto para o "lado de lá" (o antigo Império Otomano) como para o "lado de cá" (o Brasil contemporâneo).Os depoimentos orais contribuem para recuperar experiências múltiplas registradas sobre fatos comuns: arrumar as malas, a hora da partida, o momento da despedida, o primeiro "olhar" sobre o Brasil, a nova casa, o primeiro emprego, a inauguração da sinagoga, os namoros permitidos e os casamentos proibidos.

Ao longo de seu texto, Mizrahi demonstra que a lembrança é dinâmica; que ela vai se renovando no espaço das vidas num (re)arranjo de emoções grupais ou familiares. Para isto basta ler as passagens em que os protagonistas se referem ao "fantasma dos casamentos mistos" e aos "conflituosos processos de conversão"; ou então, acompanhar as alterações de nome da Sinagoga da Abolição enquanto preocupação da comunidade em reafirmar sua identidade sefaradi. Fundada em 1929 como Comunidade Sephardim de São Paulo, recebeu várias denominações: Sinagoga Israelita Brasileira do Rito Português (década de 1940), Templo Israelita Schaar Hashamaim (década de 50) e Templo Israelita Brasileiro OhelYaacov (1963).

Ao constatarmos certas diversidades grupais, nos damos conta que as modernas comunidades judaicas radicadas no Brasil têm pontos comuns em suas trajetórias, ou seja, iniciaram-se partir de um núcleo improvisado diante da necessidade de construir um espaço particularmente judaico onde pudesssem constituir o minian. Assim, na história de cada uma das instituições dos judeus radicados em São Paulo e no Rio de Janeiro, sobrevivem resquícios de diferentes lideranças modeladas ora por valores sefaradis e asquenazis, ora por movimentos de emancipação judaica. Tais diversidades na composição interna da comunidade, acabaram por agrupar seus membros em diferentes associações, escolas clubes recreativos e sinagogas. Percebemos que a imigração judaica, ao longo do século XX, vai deixando de ser uma ação de grupos desamparados para se transformar numa rede composta por indivíduos mobilizados por estratégias de superação social2. No caso dos judeus orientais, por exemplo, fica evidente como cada família procurou se agregar em espaços fundados na procedência comum: Istambul, Sidon, Rodes, Esmirna, Salônica,Yafo, Safed etc. A chave está na identidade destes protagonistas que, a partir de uma rede de relações sociais e econômicas, influenciaram o mercado de trabalho e a cultura brasileira. É neste contexto que percebemos a duplicidade de sentimentos mesclados pelas sensações plenas de pertencimento e de desenraizamento.

Enfim, é a história vivida (e narrada) por estes imigrantes judeus do Oriente Médio que dá à Autora os elementos básicos para a "construção" da memória da comunidade judaica em São Paulo e Rio de Janeiro. A memória, neste caso, recompõe a relação passado/presente garantindo para o futuro a sobrevivência das lembranças: o lugar da memória. Coube a Mizrahi, enquanto membro do grupo-comunidade, fixá-las por escrito em uma narrativa formal. É quando se configura "a memória coletiva que envolve memórias individuais sem, entretanto, se confundir com elas" , como enfatizou Maurice Halbwachs em sua obra Memória Coletiva3. Ao cruzar os registros históricos (atas, correspondências, ofícios, lista de sócios, estatutos, imprensa e diários pessoais) com os depoimentos dos principais representantes do núcleo sefaradi de São Paulo e Rio de Janeiro, a Autora conseguiu recompor uma "espécie de cadeia de pertencimento" onde todos se (re)conhecem com parte de um todo4. Neste caso, autora e obra se prestam como reforço para o exemplo dado por Pierre Nora, que considerou os judeus como um grupo-comunidade chamando-os de "povo da memória" 5.

Maria Luiza Tucci Carneiro
Universidade de São Paulo
São Paulo, 2003


NOTAS
1. Miguel Telles da Costa era cristão-novo e filho de penitenciados pelo Santo Ofício, estigma que não o impediu de ser designado como capitão-mor de Parati, posto que ocupou entre 1702 até 1705, quando recebeu ordem de prisão pelo Santo Ofício. Rachel Mizrahi Bromberg, A Inquisição no Brasil: Um Capitão-mor Judaizante. São Paulo, Centro de Estudos Judaicos/FFLCH,USP, 1984. Dissertação de Mestrado em História Social, orientada pela Profa. Dra. Anita Novinsky.
2. María Bjerg y Hernán Otero (org.), Inmigración y Redes Sociales en la Argentina Moderna, Buenos Aires, Centro de Estudios Migratorios Latinoamericanos, Instituto de Estudios Sociales, 1995.
3. Maurice Halbwachs, Memória Coletiva, São Paulo, Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1990, p. 53.
4. Márcia Mansor D'Aléssio, "Memória: Leituras de M. Halbwachs e P. Nora", Revista Brasileira de História, São Paulo, vol.13, n. 25/26, set. 92/ago.1993, p. 97.
5. Pierre Nora, "Entre Mémoire et Histoire", Les Lieux de Mémoire, Paris, Gallimard, 1984, p. XIX.



Introdução

Esta narrativa nasce da tentativa de reconstruir o passado das comunidades judaicas do Oriente Médio em São Paulo e no Rio de Janeiro. O interesse em pesquisar imigrantes judeus — sefaradis e os judeu-orientais — do Oriente Médio foi despertado por dois motivos: um, de ordem acadêmica e o outro, pessoal. Desde o início de minhas investigações no campo da História Social senti-me atraída pelos temas que resgatassem o passado de grupos minoritários. A análise dos processos inquisitoriais que permitiu recompor a trajetória de vida de um capitão cristão-novo na Capitania de Nossa Senhora da Conceição de Itanhaém, sob a orientação da Profa. Dra. Anita Novinsky, constituiu-se em um estímulo gratificante para que transformasse a pesquisa do doutorado em livro. Os cristãos-novos, como os judeus do Oriente Médio, foram obrigados a abandonar a terra de origem e buscar alternativas de vida em outras regiões. Embora vivendo em tempos históricos diferentes, os dois grupos passaram por processos de ruptura demarcados por traumas e esperanças por dias melhores, o recomeço. Assim, os judeus sefaradis de fala ladina, expulsos das terras ibéricas a partir de 1492 e instalados nas regiões do Mediterrâneo e Oriente Médio, dominadas pelos turcos otomanos, retornaram ao Ocidente após cinco séculos.

O segundo motivo foi de ordem pessoal. Pelo fato de ser filha de imigrantes judeus do Oriente Médio, tendo nascido e vivido na Mooca, sensibilizei-me com o pouco conhecimento de líderes comunitários a respeito do grupo que, em pouco tempo, completará cem anos de presença no Brasil. Ao ouvir a declaração de um antigo presidente comunitário, que "as lembranças... são nosso único patrimônio", decidi iniciar investigação sistemática sobre a trajetória desses imigrantes em São Paulo.

Para compreender e melhor situar esses imigrantes, e as comunidades por eles organizadas no Rio de Janeiro e em São Paulo, foi necessário buscar suas matrizes culturais no Oriente Médio. Não dominando o hebraico, tive limitado o acesso a estudos específicos, publicados por israelenses. Os historiadores Issachar Ben Ami, Margalit Bejarano e Nehemias Levetzion, da Universidade Hebraica de Jerusalém, pessoalmente, foram contatados e indicaram aspectos que poderiam ainda ser explorados na pesquisa para, assim, conhecer como e em que sentido a cultura dos judeu-orientais diferenciava-se dos sefaradis, além de detectar quais os traços da cultura sefaradi foram assimilados pelos judeus que os acolheram e, se possível, construir um modelo da fusão cultural, resultante do encontro de judeus exilados e locais. As dificuldades das pesquisas adicionais fizeram com que estes questionamentos ficassem em aberto.

Outro estímulo adicional à pesquisa resultou de um encontro, em minha residência, com amigos de infância da comunidade da Mooca. Betty Nigri Efraim, Gabriel Zitune, Teresa Nigri e eu sentimos necessidade de resgatar as histórias de nossas famílias, na luta pela sobrevivência, suas vivências, dificuldades de adaptação, alegrias, tristezas e desalentos. Ao recordar a infância na Mooca, bairro da zona leste de São Paulo, notamos que nossas histórias complementavam-se.

Transcrevendo alguns relatos, pude perceber a complexidade cultural desses imigrantes, naturais de milenar civilização do Oriente Médio.

Em 1995, ao iniciar a pesquisa, o foco direcionado à pequena comunidade da Mooca ampliou-se. Observei que não havia possibilidade de compreendê-la se não inserisse os sefaradis da Abolição. Depois, os estreitos contatos intercomunitários conduziram a pesquisa ao Rio de Janeiro, culminando com o estabelecimento de imigrantes judeus em São Paulo, refugiados das guerras do Oriente Médio, a partir de 1948. Envolvendo vários grupos de imigrantes em locais e momentos diferentes, acredito que posicionamos os judeus do Oriente Médio nos estudos sobre a imigração judaica brasileira.

A identidade cultural, as relações de parentesco e de amizade com os primeiros imigrantes do Oriente Médio permitiram a quebra das barreiras de resgate das lembranças dos depoentes idosos. Não habituados ao registro de memória, as fontes disponíveis para a (re)construção da história das primeiras comunidades vieram do estudo das poucas atas e dos estatutos das sinagogas, sociedades beneficentes, relatórios, discursos e um jornal do Grêmio Sinai. Embora se constituam provas evidentes do fato histórico, estes documentos foram, em si, insuficientes para recompor a história das comunidades em processo de vida e reformulação de valores. Em decorrência da limitação das fontes documentais, busquei a técnica da história oral.

Esta metodologia, adotada por cientistas sociais para a construção da memória de pequenas comunidades, foi adequada e pertinente à minha proposta. Apreender a "História do Presente" não é tarefa fácil, esbarrar no subjetivismo é comum, especialmente, porque adotamos metodologia não convencional rejeitada por acadêmicos conservadores. Com auxílio de recursos técnicos como o gravador/vídeo, "documentos" foram produzidos e registrados.

A família foi eleita como núcleo de interesse; assim, foram entrevistados imigrantes idosos, seus filhos, representantes de outros segmentos sociais, como líderes comunitários, rabinos e profissionais da comunidade, cujas narrativas ajudaram a reconstituir o cotidiano dos imigrantes. Demos atenção às tradições, religião, costumes, comportamentos e atitudes diante da vida e da morte. Os registros demonstraram representações de um universo complexo, delineado por conflitos e utopias, avanços e recuos.

A maioria dos entrevistados apresentava como "trajetórias de vida" momentos de grandes mudanças; às vezes, polêmicos. O cruzamento das histórias pessoais contribuiu para a construção dos ciclos de vida e de morte, das sociedades comerciais, dos negócios, das tensões familiares, das facilidades e dificuldades características do processo de acomodação, adaptação e conflitos de um imigrante recém-chegado a um mundo estranho a seus costumes.

Ao relembrar o passado, os entrevistados lidaram com muitos de seus problemas pessoais, explicações para o difícil contato com imigrantes de outras origens, até mesmo, para justificar os interesses implícitos nas alianças familiares de casamentos e negócios. Na realidade, as lembranças de suas reais necessidades e dificuldades incomodavam como expressão de fracasso e incapacidade para "recomeçar". Estas informações, ausentes dos documentos escritos, puderam ser reconstituídas pelas novas entrevistas, algumas marcadas por silêncios e desalentos que me sensibilizaram, tornando-me cúmplice de revelações contidas, agora livres de censuras, que só o tempo torna possível. O emprego da técnica de história oral permite a apreensão da realidade que nenhum outro documento consegue revelar. As informações registradas foram "legitimadas" pela freqüência das mesmas, pela avaliação comparativa das distintas versões e por alguns documentos de arquivos pessoais e comunitários. A "realidade histórica" emergiu de forma completa como somatória de diversas fontes. A multiplicidade dos relatos, o tempo limitado e o desinteresse de alguns criaram empecilho para o envolvimento de mais famílias, o que foi somente compensado pelas informações já obtidas e imagens fotográficas, belas e antigas, colocadas à disposição da pesquisadora.

No Rio de Janeiro, a leitura dos documentos diplomáticos do Arquivo do Itamaraty permitiu conhecer a política imigratória adotada pelo governo brasileiro com relação aos primeiros imigrantes vindos do Oriente Médio. As contendas nacionalistas desse período fizeram com que o governo se mostrasse inseguro; assim, nomeavam com diplomacia, representantes no exterior ou designavam escritórios de representação diplomática no Oriente Médio com o objetivo de regularizar e controlar a imigração que, a partir dos anos 1920, intensificou-se. A documentação trocada entre os representantes, como a concessão de vistos de judeus para o Brasil é de grande valia e permitiu compreender os critérios de seleção adotados por diplomatas, induzidos por uma mentalidade anti-semita, por tradição. No Museu da Hospedaria dos Imigrantes de São Paulo, foram localizadas informações adicionais e complementares ao processo imigratório. Pela lista nominal dos grupos, pela identificação das embarcações e pelas datas de chegada ao porto de Santos foi possível recompor as listas dos imigrantes judeus do Oriente Médio e provenientes dos portos intermediários no Mediterrâneo.

Com o objetivo de reconstituir as relações familiares das comunidades em questão, utilizei-me de estudos genealógicos, graficamente visualizados e do acervo fotográfico colocado à disposição pelas famílias. Documentos, mapas, tabelas e gráficos estatísticos foram usados para explicação mais abrangente. Muito embora, no texto encontrem-se elucidações sobre a terminologia em hebraico, no final, há um glossário onde conceitos gerais e, cerimônias judaicas são descritas com maior detalhe.

Leia mais
  • Leituras Cruzadas: O ingrediente judaico

         

  • Copyright Folha de S. Paulo. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br).