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25/11/2003 - 02h50

Perfil: Dissonância na alfabetização

CYNARA MENEZES
free-lance para a Folha de S.Paulo

O que poderia haver em comum entre o comandante Fidel Castro, o "xerife" George W. Bush e um pacato professor de psicologia da USP? Parece incrível, mas une os três uma causa que, no Brasil, ainda não chegou à política: a defesa do método fônico de alfabetização. Aprovado entre crianças com dislexia e adotado com bons resultados em vários países a partir da metade da década de 1990, o método encontrou em Fernando Capovilla, 43, seu evangelista brasileiro.

Cris Bierrenbach/Folha Imagem
O psicólogo Fernando Capovilla
Adepto da religião batista, Capovilla carrega mesmo um jeito de missionário, na postura tímida, na entonação calma da voz, embora a convicção ferrenha, como a fé religiosa, faça suas palavras saírem algumas vezes aos borbotões, tal um pastor exaltado no púlpito dominical. Em sua cruzada pelo fônico, elegeu até mesmo uma imagem "pagã" a ser demolida: o construtivismo e sua atual "guru", segundo ele, a psicolinguista argentina Emilia Ferreiro, 66, em cujas teorias se inspiraram os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) da primeira à quarta série do ensino fundamental adotados no Brasil desde 1997.

"O mundo inteiro vem discutindo o método. Aqui não, só existe a verdade de 'santa' Emilia Ferreiro. O Brasil inteiro fica de joelhos diante dela", critica Capovilla, nascido em Valinhos (SP) e formado em psicologia pela PUC de Campinas (SP). Para ele, o atual método de alfabetização baseado nos construtivistas, e por conseguinte adotado pelos PCNs, são "obras-primas de burrice pré-científica". Jean Piaget (1896-1980), criador do construtivismo, e o educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) seriam outros profetas ultrapassados pela nova crença fônica. "Piaget e Paulo Freire foram gigantes, mas de seu tempo", defende Capovilla.

Para o pesquisador, Emilia Ferreiro teria feito alguns progressos em relação a Piaget, mas permanecido ligada ao arcabouço teórico, "ignorando toda a pesquisa feita desde 1985, que resultou no advento da neuroimagem, da tomografia computadorizada, da ressonância magnética. Tudo isso nos ensinou que Piaget estava francamente errado. Ciência tem prazo de validade", prega, apesar de esclarecer que sua crítica ao construtivismo diz respeito somente à alfabetização.

É uma briga boa, quase um cisma da pedagogia. Para tentar se situar em um dos lados, é preciso diferenciar os dois conceitos: em resumo, enquanto a proposta construtivista dos PCNs professa a adoção de textos inteiros desde os primeiros dias de aula, familiarizando as crianças com letras e palavras em um "texto real", o método fônico apregoa que as letras devem ser apresentadas e conhecidas por meio da associação com os sons que emitem. Ou seja, ao mesmo tempo que uma frase famosa de Ferreiro é "ler não é decifrar", Capovilla sustenta que "ler é decodificar".

Quando a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) e a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) divulgaram, em julho, a Pisa (Pesquisa Internacional de Avaliação do Estudante), com o desempenho de 41 países em relação à leitura, colocando o Brasil em 37º lugar, forneceram o argumento que faltava a Capovilla.

Raio-X

Nome: Fernando César Capovilla, 43
Família: Casado com Alessandra e pai de Ana Beatrice, de 1 ano
Religião: batista
Profissão: professor associado em psicologia experimental humana do Instituto de Psicologia da USP
Hobby: brincar com a filha. "Jogo xadrez, mas descobri que a vida é curta demais para ficar jogando xadrez"
Livro: "A Bíblia é o livro mais maravilhoso que já li. Sou muito amigo do autor..."
Ídolo: "Quem tem Deus não tem ídolos"


Dois anos atrás, quando uma lista de 32 países pesquisados pela OCDE foi publicada, com os brasileiros de 15 anos na última posição em nível de leitura, o então ministro da Educação Paulo Renato Souza atribuiu o mau resultado ao atraso escolar. "Há quem o atribua ao subdesenvolvimento, à violência urbana, blablablá. Bobagem", ironiza Capovilla. "A Inglaterra tinha, em 1996, 45% das crianças abaixo do nível mínimo admissível para a leitura, porque usavam o método que o Brasil usa hoje. Em 1997, mudou para o fônico, e hoje só tem 20%."

Nos EUA, a discussão ganhou tanto destaque que o método fônico se tornou o carro-chefe do programa educacional do governo Bush, que alardeia "uma nova era em educação". O guru de Bush, o educador Reid Lyon, foi ignorado durante anos até o então candidato a presidente (cujo irmão Neil é disléxico) lançar a frase: "Phonics works" (o fônico funciona). O método tinha sido utilizado nos EUA e em muitos países até a década de 1970, quando foi substituído pelo "whole language" (linguagem total).

Agora o fônico é aplicado oficialmente em pelo menos cinco Estados americanos e recomendado na maioria, além de em grande parte dos países que aparecem no topo da lista do Pisa. "O método fônico une estadistas no mundo inteiro", diz Capovilla.

Até abraçar a missão de difundir o método fônico, o professor da USP trilhou um caminho, de acordo com o próprio, cheio de provações. Teve de enfrentar a resistência dos pareceristas dos órgãos de pesquisa quando enveredou pela seara da informática, por volta de 1990, ao concluir o Ph.D em psicologia experimental na Temple University (Filadélfia, EUA). Seu interesse estava justamente em operar milagres tecnológicos: usar os computadores para fazer se comunicarem pessoas com dificuldades de fala. No início, não conseguiu patrocínio oficial para implantar seus sistemas de "comunicação alternativa", como são chamados.

Mas surgiram bons samaritanos para ajudá-lo na tarefa: pessoas com dinheiro —por questão ética, não revela nomes— que tinham parentes afásicos (com dificuldades neurolinguísticas) se interessaram pelas pesquisas. Capovilla montava o sistema gratuitamente para o familiar atingido e, em troca, recebia equipamentos para seu laboratório. Um deles era um industrial de 78 anos, "fundador de um império de alimentação", que havia sofrido um AVC (acidente vascular cerebral) e ficado com uma afasia denominada "de Broca" referência ao neurologista francês Paul Broca (1824-1880), que a estudou.

A afasia de Broca é um distúrbio oriundo de uma lesão na região frontal do cérebro, que causou, nesse paciente, a paralisia do braço direito; também não conseguia ler, escrever ou falar. A equipe de Capovilla escaneou e colocou no computador fotos de familiares e das pessoas que conviviam com o paciente, assim como dos remédios que tomava. Com a mão esquerda, ele podia acionar a tela sensível ao toque, desdobrar categorias e escrever mensagens a partir das imagens: estou com sede, quero comer, não gosto desse enfermeiro, tenho dor de estômago.

Em uma paciente de 43 anos com paralisia cerebral, com perda auditiva, que não falava e não era alfabetizada, mas sem comprometimento intelectual, o sistema de comunicação alternativa desenvolvido por Capovilla permitiu fazê-la contar histórias de infância, além de ter aprendido sozinha a ler e escrever quase perfeitamente. Outro homem adulto, ex-engenheiro incapaz de fazer qualquer movimento, pôde passar a acionar o computador e a TV em um piscar de olhos. Literalmente.

"Temos sensores adaptados à musculatura orbicular (do olho), a última sobre a qual os pacientes com esclerose lateral amiotrófica perdem o controle", conta. É o mesmo tipo de doença que atinge o físico inglês Stephen Hawking, autor de "Uma Breve História do Tempo" (Rocco). "Hoje, o que conseguimos de mais avançado é o sistema de comunicação alternativa falante, com fala pré-armazenada, que conjuga os verbos automaticamente e pode ser acionada pelo piscar de olhos, com varredura linha a linha, item a item. Um surdo tetraplégico brasileiro que não lê lábios e não fala pode se comunicar com um norte-americano cego que não conheça a língua de sinais."

Do trabalho com deficientes auditivos veio o interesse pela Libras (Língua Brasileira de Sinais), e o psicólogo se empenharia, com sua orientanda de mestrado Walkiria Duarte Raphael, na confecção de um "Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue: Libras, Português e Inglês", que tem como autor do prefácio o neurologista Oliver Sacks —autor de "Tempo de Despertar", que deu origem ao filme homônimo de Penny Marshall (1986), um dos preferidos de Capovilla.

Ao comentar sobre o livro, indicado ao prêmio Jabuti no ano passado, Capovilla deixa a modéstia definitivamente de lado. "Queríamos fazer um dicionário tão bom quanto o da norte-americana Elaine Costello, o 'Random House Webster's American Sign Language Dictionary', minha paixão. Quando concluímos o nosso, fui apresentá-lo numa palestra na Gallaudet University, em Washington, e ouvi que era superior a qualquer outro", diz. A Gallaudet é uma universidade norte-americana especializada no ensino de pessoas surdas ou com dificuldades auditivas.

Uma coisa leva a outra no mundo da linguagem, e foi ao estudar crianças com dislexia que Capovilla se viu "iluminado" pelo método fônico —ensinar os disléxicos com a ajuda do método é praticamente uma unanimidade científica. "A dislexia é um distúrbio de aquisição de linguagem escrita, de natureza hereditária, com um cérebro anatomicamente diferente", explica o psicólogo, casado com Alessandra, também psicóloga, sua parceira na autoria de três livros sobre o método fônico.

"Foi uma surpresa, porém, verificar na clínica que muitas das crianças na verdade não eram disléxicas e não tinham histórico familiar. Seus cérebros não eram disléxicos, mas pareciam, pelo seu desempenho. Mas, quando nós aplicávamos o método fônico, melhoravam rapidinho. Descobri que funciona maravilhosamente bem com os disléxicos e, portanto, ainda melhor com o cérebro não disléxico."

A tendência mais respeitada entre a maior parte dos especialistas, no entanto, fala de combinar as duas concepções: fônica e linguagem total. Isso, o próprio algoz dos construtivistas reconhece. "Realmente, o método misto pode ser bom, mas para os países desenvolvidos. Nós, países em desenvolvimento, não podemos nos dar ao luxo. Aqui o ideal é implantar imediatamente o método fônico, que é mais eficiente a curto prazo e tem custo nulo."

Capovilla afirma que vai continuar sua campanha, amparado também na religião. "Quando o cientista exclui o lado espiritual, fica à mercê do controle material e social. Vai publicar aquilo que é aceito, em uma área de pesquisa que seja financiável. Se eu fosse materialista, não teria abraçado essa causa perigosíssima e valente. Sei que vou ganhar."

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