Folha Online sinapse  
25/11/2003 - 02h54

Trecho do livro "A Capital da Solidão"

da Folha de S.Paulo de S.Paulo

Leia abaixo trecho do livro "A Capital da Solidão" (Objetiva, 560 págs., R$ 62,90), de Roberto Pompeu de Toledo.

" ...São Paulo, de tão obscura, nasceu até escondida. O espaço onde se assentaria mantinha-se não só invisível, aos olhos dos que chegavam do mar, como protegido por essa muralha compacta, impressionante, que é a serra do Mar. Euclides da Cunha, em Os sertões, descreveu-a como "dilatado muro de arrimo, sustentando as formações sedimentárias do interior". Não se compreenderá a história de São Paulo sem antes atentar para a serra do Mar. Vista de baixo, ela como que veda o horizonte, ou tranca a paisagem. Põe um ponto final à terra, como a querer esconder algum outro mundo, protegê-lo, proibi-lo. Os paulistas estão hoje tão acostumados a ela que mal se importam com sua silhueta majestosa, guardiã entre o mar e a terra, degrau de acesso ao Planalto de onde se desenvolverão as lonjuras do interior do Brasil. Galgá-la, hoje, pelo menos quando não é fim de feriado, e o retorno a São Paulo resulta nos maiores congestionamentos do Brasil, se não do Hemisfério Sul, é tão simples quanto subir o lance de escada de um sobrado para ganhar o andar de cima. Servem a esse propósito duas das melhores estradas brasileiras, as vias Anchieta e Imigrantes, significativamente apelidadas com nomes evocativos de dois momentos cruciais do fluxo entre os dois lados — o primitivo, da época dos primeiros povoamentos do Planalto, e aquele que, na passagem do século XIX para o XX, transformou a região num aglomerado de gente vinda de diferentes partes do mundo.

Imagine-se, porém, subir a serra no tempo em que não havia estrada, apenas trilhas indígenas no meio do mato. Aliás não é preciso imaginar, basta seguir as descrições do padre Anchieta, que tantas vezes teve de dar-se a esse esforço. Num de seus textos, qualificou o caminho como "mui áspero e, segundo creio, o pior que há no mundo". Noutro, afirmou que nele "dificultosamente podem subir nenhuns animais, e os homens sobem com trabalho e às vezes de gatinhas". Outro jesuíta, o padre Fernão Cardim, que fez o trajeto em 1585, escreveu: "O caminho é tão íngreme que às vezes íamos pegando com as mãos." O viajante de hoje vai sobre rodas, e ao subir a serra entre Santos e São Paulo, quer por motivo da alta velocidade com que consegue avançar, quando o caminho está livre, quer, na circunstância oposta, por efeito do mau humor causado pelo congestionamento de tráfego, apresentará outra característica a diferenciá-lo do viajante de outrora: estará menos receptivo à beleza e ao mistério do lugar. Atravessa-se ali um exuberante pedaço de Mata Atlântica, densa, variada, cortada por correntes de água que despencam em cascatas. Quando o tempo está claro, sem a neblina tão freqüente, em vários trechos se pode ver o mar, lá embaixo. Ao padre Cardim não escaparam as maravilhas do local. "Chegando ao Paranapiacaba", escreveu, "lugar donde se vê o mar, descobrimos o mar largo quando podíamos alcançar com a vista, e uma enseada de mangais e braços de rio de oito léguas e duas e três em largo, cousa muito para ver."

O que dá à serra aparência de muralha não é só a altura de 800 metros, nem a continuidade compacta com que se desenvolve, paralela ao mar. É também o fato de subir não em pequena inclinação, por meio de suaves escarpas, mas de maneira abrupta, e de em cima, no cume, exibir um perfil composto não de uma sucessão de picos, uns mais altos e outros menos, mas de uma linha reta, ou quase reta, como nas paredes feitas com mão de homem. Neste trecho, a serra do Mar, que vem vindo desde o sul da Bahia e vai durar até já bem avançada no Rio Grande do Sul, encontra-se muito próxima da orla marítima, não mais do que dez quilômetros, e por isso pode ser vista em toda a inteireza de seu papel de escudo contra a penetração do interior. Até hoje, mesmo com todos os prédios a cercear a vista, contempla-se a serra do Mar praticamente de qualquer ponto das cidades irmãs xifópagas de Santos e São Vicente. A partir de um ponto como a ponta da Praia, local onde começa o canal que conduz ao porto de Santos, tem-se dela uma vista privilegiada. É onde, provavelmente, os primeiros europeus atracavam seus navios. Atracavam e viam o paredão. Fazer o quê? Ora, um paredão oferece duas alternativas. Ou bem o forasteiro se intimida, desiste e recua, ou avança e ousa vencê-lo. Uma barreira é tanto um obstáculo que desengana quanto um convite para que se procure superá-lo. A barreira tanto desencoraja quanto tenta. Se existe, é porque esconde algo. Se esconde algo, é porque é precioso. Os primeiros portugueses decidiram-se pela segunda alternativa, ato que seria o primeiro a determinar a criação da cidade de São Paulo..."

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