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25/11/2003 - 02h56

Leituras Cruzadas: Inflexões paulistanas

ROBERTO ROCCO
especial para a Folha de S.Paulo

Divulgação/Melhoramentos
Av. São João, em foto de "São Paulo Anos 20"
Em 25 de janeiro de 1954, sob uma chuva de prata, São Paulo celebrou seus 400 anos com fúria hiperbólica. Naquele dia, logo cedo, o arcebispo de São Paulo rezou a missa que inaugurou a gigantesca catedral da Sé, em construção desde 1913 (ainda sem as torres e com a cúpula em obras). Inaugurava-se também o parque Ibirapuera, projeto do arquiteto modernista Oscar Niemeyer.

Naquele ano, um sem-número de eventos e inaugurações marcaram a data redonda: desde a inauguração do órgão alemão do mosteiro de São Bento até o salão das Autoridades do aeroporto de Congonhas. Lançava-se a pedra fundamental do Conjunto Nacional, na avenida Paulista, e o Corinthians de Luizinho era campeão da Copa 4º Centenário (como havia sido batizado o Campeonato Paulista naquele ano). Ismael Guiser solava numa das 17 coreografias preparadas pelo Balé do 4º Centenário e inaugurava-se a Rádio Bandeirantes. Para a 2ª Bienal de Artes Plásticas, o MoMA de Nova York havia emprestado a "Guernica", de Picasso, e mais 80 obras do artista.

A chuva de prata que caiu então sobre São Paulo se constituía, na realidade, de milhares de pequenos triângulos metalizados, estampados com símbolos da celebração e lançados de um avião sobre a cidade. Foram depois colecionados e trocados como figurinhas. As lojas também andavam atulhadas de pratos pintados, broches, brinquedos, flâmulas e bandeiras celebrando a data.

Aos 400 anos, a cidade olhava com confiança para o futuro e se via como portadora da modernidade e do progresso num país "atrasado" e rural. São Paulo seria, no futuro, uma "Nova York tropical", pois era a "cidade que mais cresce no mundo".

De certa forma, as celebrações do quarto centenário cristalizavam a mitologia paulistana que vinha tomando forma desde que a cidade se tornara o centro dinâmico da economia nacional, com o capital gerado pelo "ouro verde" plantado no planalto. Essa mitologia havia despontado com força surpreendente na Revolução de 1932, quando setores da sociedade paulista se insurgiram contra a ditadura de Vargas.

"A luta pela constitucionalização do país, os temas da autonomia e da superioridade de São Paulo diante dos demais estados eletrizaram boa parte da população paulista", conta Boris Fausto em sua "História do Brasil" (Edusp, 664 págs., R$ 59). Segundo Fausto, "o movimento de 32 uniu diferentes setores sociais, da cafeicultura à classe média, passando pelos industriais. Só a classe operária (...) ficou à margem dos acontecimentos".

A propaganda política de massa fazia sua "avant-première", e o rádio foi usado extensivamente para conclamar os cidadãos a sair às ruas e doar "ouro para o bem de São Paulo", enquanto cartazes com os dizeres "Abaixo a dictadura" mostravam um gigantesco bandeirante e sua espingarda fumegante segurando um minúsculo e amedrontado Vargas.

Foi nessa ocasião que se generalizou a imagem de São Paulo como "locomotiva da nação": o Estado era representado como uma poderosa locomotiva puxando 20 vagões vazios, representando os demais Estados da federação. São Paulo estava "sozinho" contra o resto do Brasil, contra a ditadura e pela democracia liberal (o que não impediu que, derrotadas, as elites paulistas encontrassem um "compromisso" com o varguismo).

Estava inventado o Olimpo paulista, onde troavam os heróicos bandeirantes, ladeados por índias virginais, velando por uma terra de gigantes predestinada ao progresso e à modernidade. Muito diferente da imagem da cidade em seus primeiros séculos, que nos apresenta Roberto Pompeu de Toledo no recém-lançado "A Capital da Solidão" (Objetiva, 560 págs., R$ 62,90), onde retrata um vilarejo remoto e desimportante, no qual as noites escuras e silenciosas só viriam a ser animadas a partir de 1827, quando a cidade foi escolhida para receber uma academia de direito.

O livro de Pompeu, no entanto, é bem mais que um relato dos primeiros tempos de São Paulo: o autor recria a paisagem mental da cidade, onde imperavam o silêncio e a solidão, enfatizando sua condição periférica e agregando dados à sua historiografia.

Marilena Chaui explica, em "Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária" (Perseu Abramo, 103 págs., R$ 20), que o mito da fundação se refere a um momento passado imaginário, tido como instante originário que se mantém vivo e presente no curso do tempo, visando a algo tido como perene ("quase eterno") que sustenta o curso temporal e lhe dá sentido.

As personagens que fizeram parte da fundação de São Paulo e dos seus primórdios (Anchieta, Manuel da Nóbrega, Tibiriçá, Bartira, os bandeirantes) adquirem caráter quase mitológico e são "recriados" como heróis na Revolução de 32 e nas comemorações do quarto centenário. Entretanto, a criação de uma identidade paulista sobre esses mitos se fez progressivamente, desde muito antes.

Isso é analisado a fundo por Antônio Celso Ferreira, em "A Epopéia Bandeirante: letrados, instituições, invenção Histórica (1870-1940)", da Editora da Unesp (376 págs., R$ 40). O autor examina as obras de intelectuais paulistas entre 1870 e 1940 e descortina a busca da construção de uma identidade regional específica.

Mas voltemos ao quarto centenário. Nessa ocasião, com a entrada em cena da burguesia industrial (e quem melhor a representava que Ciccillo Matarazzo?), os anos 50 teriam visto surgir como "imagem emblemática do país", segundo Chaui, "de tal maneira que a força do capital industrial deveria levar a uma transformação ideológica na qual o desenvolvimento econômico apareceria como obra dos homens e deixaria para trás o país como dádiva de Deus e da natureza".

Haveria, portanto, uma substituição da ideologia nacional verde-amarela pelo nacional-desenvolvimentismo, que buscava diminuir o poder e o atraso do latifúndio e da burguesia mercantil (personificados à época pelos reacionários e truculentos coronéis do Nordeste, por exemplo) e neutralizar os perigos trazidos pela classe operária por meio de uma ideologia que permitisse às massas reconhecer as "potencialidades do país para passar da pobreza e do atraso ao desenvolvimento e à modernidade".

Não foi à toa que os principais monumentos inaugurados no parque Ibirapuera em 1954 foram o Monumento às Bandeiras (de Victor Brecheret) e o obelisco-mausoléu em memória dos combatentes de 32 (obra de Galileo Emendabili) —e que a avenida 23 de Maio, que liga o parque ao centro da cidade, faça menção à data em que morreram os estudantes Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo, que deram nome ao movimento MMDC, um dos pilares de 32.

Vavy Pacheco Borges nos aproxima do pensamento e do cotidiano de 32 em "Memória Paulista" (Edusp, 240 págs., R$ 55), onde apresenta e analisa dois diários (fartamente ilustrados com aquarelas) do desconhecido comandante de cavalaria Alfredo Feijó. Em outra valiosa contribuição à história social de São Paulo, depoimentos de pessoas que viveram a Revolução de 32 aparecem no excelente "Memória e Sociedade", de Ecléa Bosi (Companhia das Letras, 488 págs, R$ 47,50).

Assim, uma série de expectativas e ambições da cidade de São Paulo, abafadas desde a crise de 29, o golpe getulista e a audaciosa (mas derrotada) Revolução de 32, cristalizam-se nas celebrações do aniversário dos 400 anos. Apesar das adversidades, a cidade vivia um excepcional crescimento econômico, demográfico, e profundas mudanças urbanísticas. Era prefeito o irascível Jânio da Silva Quadros, que marcaria a política do país com a frase "o tostão contra o milhão", mote de sua plataforma anticorrupção (aliás, um de seus "alvos" de campanha tinha sido justamente a dinheirama gasta para a celebração).

É esse período extraordinário que discute Maria Arminda do Nascimento Arruda em "Metrópole e Cultura - São Paulo no Meio do Século 20" (Edusc, 482 págs., R$ 39). Para Arruda, "a economia paulista ancorava-se em condições extremamente favoráveis para seu desenvolvimento, ampliando poderosamente sua capacidade de acumulação (...), sobretudo pela potencialidade revelada no setor industrial". Nesse clima de progresso, o "Hino do 4º Centenário", de Mario Zan (o mesmo que compôs um hino para os 450 anos da cidade) e J.M. Alves, bradava: "Ó terra Bandeirante/ De quem se orgulha a nossa nação!/ Deste Brasil gigante,/ Tu és a alma e o coração!" (outras músicas referentes à história de São Paulo podem ser encontradas no completíssimo site de Ilnio de Mello Franco, no endereço www.musicasantigas.com/mus_sp.htm).

Marcos Virgílio da Silva, pesquisador da FAU-USP que desenvolveu um trabalho sobre a produção de vários compositores e sua relação com as mudanças ocorridas na cidade entre 1946 e 1957, observa que, apesar do clima de ufanismo, as músicas do período revelam também uma percepção dos problemas que a cidade enfrentava com o crescimento e a modernização, como é o caso da "Saudosa Maloca" (1951), de Adoniran Barbosa. Na canção, a casa "véia" é demolida e há mesmo uma certa resignação diante da inevitabilidade do "progresso": "Os home tá co'a razão,/ Nóis arranja outro lugá".

Para fazer o leitor conhecer mais sobre o compositor paulista (ele nasceu em Valinhos, interior de SP), o historiador Celso de Campos Jr. lança em janeiro "Adoniran: Uma Biografia" (Globo, 568 págs., preço a definir). Para Campos Jr., é possível traçar um paralelo claro entre a história de São Paulo por meio da trajetória de seu artista "mais representativo", opinião aparentemente compartilhada por Flávio Moura e André Nigri, autores de "Adoniran: Se o Senhor Não Tá Lembrado" (Boitempo, 168 págs, R$ 26), livro da coleção Paulicéia.

Já o quase-hino dos paulistanos, "Ronda", de Paulo Vanzolini, gravada em 1953, mostra uma cidade mais sombria, onde uma mulher desesperada vai aos bares à procura de seu amante, e antevê a antológica manchete "Cena de sangue num bar da avenida São João".Essa São Paulo, marginal e noturna, também havia sido explorada por Sylvio Floreal (pseudônimo do jornalista Domingos Alexandre) no relançamento de "Ronda da Meia-Noite: Vícios, Misérias e Esplendores da Cidade de São Paulo" (Paz e Terra, 195 págs., R$ 17).

Publicado originalmente em 1925, o livro é uma contribuição importante ao entendimento das novas formas de sociabilidade e lazer introduzidas com a modernização dos costumes.

De fato, o crescimento da cidade e os problemas trazidos pelo progresso são analisados de maneira crítica em vários lançamentos editoriais recentes que privilegiam a história social e nos mostram não a "grande história" da cidade que chega perto dos 500 anos, mas fogem dos acontecimentos políticos de gabinete e concentram sua atenção à "pequena história" das mentalidades e do cotidiano. Por exemplo, "A Gripe Espanhola em São Paulo, 1918: Epidemia e Sociedade" (Paz e Terra, 393 págs, R$ 27, coleção São Paulo), de Cláudio Bertolli Filho, desmistifica a idéia da "doença democrática" e faz uma arqueologia da enfermidade no contexto da sociedade paulistana da época, revelando bem mais que dados estatísticos.

As comemorações dos 450 anos da cidade poderiam significar uma reimposição atualizada do mito progressista paulistano, se não fossem algumas importantes diferenças.

Após ter crescido desmesuradamente, a "cidade que não pára de crescer" já não cresce —ainda que as periferias distantes enfrentem uma explosão populacional—, e começa a generalizar-se a percepção de que o mito da metrópole predestinada ao progresso não se cumpriu.

Ainda que a cidade continue ambiciosa no comando do processo de acumulação capitalista no Brasil, difunde-se a percepção de que a noção de "progresso" antes alardeada era enganosa: o modelo adotado era altamente excludente, resultando numa dívida social imensa, que se traduz em violência e insegurança, no deterioro ambiental e na perda de parte importante do patrimônio arquitetônico e urbanístico da cidade.

Se em 1954 a palavra de ordem era o "progresso", hoje se fala em revitalização, resgate, reforma e reconstrução. O que não deixa de ter seu lado profundamente ideológico, pois existem ainda várias "cidades" a serem construídas nas periferias. No quarto centenário, a cidade olhava para a frente, confiante no seu destino de grandeza, e hoje se volta introspectiva para si mesma e avalia, olhando com nostalgia para seu passado.

Talvez por isso, os álbuns de fotos antigas da cidade estejam tão em voga. Eles trazem de volta uma cidade gentil, que se perdeu, entre outros fatores, na explosão de sua população nos últimos 50 anos. Essa cidade "gentil" está presente no magnífico álbum "São Paulo, Anos 20: Andar, Vagar, Perder-se", de Evandro Carlos Jardim, João Musa e Ricardo Mendes (Melhoramentos, 144 págs., R$ 129), com imagens realizadas por um fotógrafo cuja identidade, até hoje, é desconhecida.

O detalhe de uma foto que abre o livro diz tudo: num jardim de gramados perfeitos, numa pérgola serenamente iluminada pelo sol, homens de paletó e chapéu lêem tranquilamente os seus jornais. Mas a cena quase bucólica se passa em pleno vale do Anhangabaú! Porém, o grande mérito do livro é o de não cair no saudosismo estéril. O "andar, vagar e perder-se" do título propõe outra saída: olhar a São Paulo de hoje pelas imagens que nos chegam do passado, seguir os passos desse andarilho anônimo e nos indagar: onde erramos? Onde acertamos? Para onde vamos?

Roberto Rocco, 37, é mestre em planejamento urbano pela FAU-USP e doutorando na Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Delft, Holanda. Paulistano, gosta de explorar a cidade com sua câmera fotográfica.

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  • Trecho do livro "A Capital da Solidão"

         

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