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25/11/2003 - 03h08

Caminho das Pedras: A verdade não é tão clara assim

REINALDO JOSÉ LOPES
free-lance para a Folha de S.Paulo

Não deve ter havido momento mais ilusoriamente satisfatório na história da ciência do que quando a polêmica dupla James Watson e Francis Crick encaixou a última pecinha em seu modelo da molécula de DNA, em 7 de março de 1953. Aquele amontoado de polígonos e varetas, clamavam os dois, representava o "segredo da vida", a chave para entender como homens, árvores, cogumelos ou bactérias nascem, crescem, se reproduzem e morrem. O emaranhado de átomos em forma de escada torcida encerrava o destino de tudo o que estava vivo.

AFP
As coisas, no entanto, se revelaram mais complicadas do que a simples estrutura da "dupla hélice" (como em geral é apelidada a molécula de DNA) sugeria há 50 anos. Se o achado revolucionou a então jovem ciência da genética, permitindo pela primeira vez que os cientistas vislumbrassem a complicada maquinaria da hereditariedade e, mais tarde, a manipulassem, não demorou muito para que se percebesse que nem tudo era tão fácil de prever ou controlável assim.

Complexidades à parte, não é por acaso que a genética costuma ser encarada como a decifração de um fenômeno mágico ou mesmo milagroso. Embora o nome da disciplina tenha sido cunhado apenas em 1906 pelo biólogo britânico William Bateson, a admiração de cientistas de todas as épocas pelo que o termo expressava sempre existiu. Afinal, nada parecia mais improvável do que a regularidade com que as características de cada ser vivo são transmitidas à geração seguinte, de forma que pais, filhos e netos se pareçam entre si e desenvolvam de forma quase perfeita os traços típicos da espécie a que pertencem.

Essa é uma das faces da moeda genética —a estabilidade. A outra, quase tão importante quanto a primeira, é a variabilidade —afinal, embora pais e filhos se pareçam, assim como todos os membros de uma mesma espécie têm uma infinidade de traços em comum, existe uma série de variações minúsculas entre os indivíduos. Essas pequenas alterações são a matéria-prima da evolução, a base para que, a partir de um único ancestral comum, surgisse toda a diversidade das formas de vida na Terra. São também essas variantes, argumentam os cientistas, que, ao menos em parte, predispõem os seres humanos a um sem-número de doenças ou tornam as pessoas altas, magras ou gordas.

Foi com base nessa esperança que o Projeto Genoma Humano e uma série de projetos irmãos no mundo todo se lançaram à tarefa de decifrar, uma a uma, as "letras" químicas do DNA de diversas criaturas vivas. Até aqui, os resultados desse esforço só ajudaram a tornar ainda mais clara a complexidade do quebra-cabeça genético, mas um subproduto animador do processo é que nunca se falou ou se publicou tanto sobre o tema. Obras escritas por cientistas inspirados ou leigos que acompanharam de perto o avanço das descobertas na área deixam essa revolução ao alcance de quem quiser entendê-la —e, às vezes, conseguem adicionar também um salutar grão de sal sobre o que ela realmente significa, em especial quando se trata de seus produtos mais polêmicos, como os alimentos transgênicos ou a clonagem.

Entre a promessa e o perigo representados pela dupla hélice e a manipulação dela, talvez o mais importante a lembrar é que não existem soluções milagrosas, por mais tentadoras que elas pareçam. A mágica dos genes precisou de bilhões de anos de trabalho duro para chegar aonde está hoje um prodígio de sofisticação que pode, mesmo assim, ser entendido e admirado por qualquer pessoa.

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