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17/02/2004 - 03h18

Uma estranha no ninho

CAROLINA CHAGAS
free-lance para a Folha de S.Paulo

Cris Bierrenbach/Folha Imagem
Raio-X

Nome: Erika Meirelles Kalil, 36
Especialidade: cirurgiã ortopédica
Formação: Santa Casa, pós-graduação na Faculdade de Medicina da USP (mestrado e doutorado)
Onde atua: Hospital das Clínicas e clínica particular

A ortopedista e cirurgiã Erika Meirelles Kalil, 36, sabe a largura e a altura de uma porta ideal para passar uma cadeira de rodas, como deve ser instalada uma torneira confortável para um paraplégico, a inclinação ideal de uma rampa e quanto custa uma obra adaptada para um deficiente físico.

Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos da Lesão Medular, coordenadora do Centro de Atendimento ao Traumatismo Raquimedular do Estado de São Paulo (Cenatra) e médica do grupo de coluna do Departamento de Ortopedia do Hospital das Clínicas, Erika pensa quase o tempo todo no assunto. "As horas que sobram dedico aos meus filhos, Lucas, 14, e Laura, 7, minhas duas grandes alegrias nesta vida", conta a ortopedista.

O conhecimento de detalhes que muitos engenheiros civis ignoram veio da preocupação com os pacientes que, da noite para o dia, descobrem que não poderão mais andar. "É incrível, mas para construir qualquer ambiente adaptado se gasta algo muito próximo de 1% a mais do que em uma obra normal. Uma reforma, no entanto, sai muito mais caro", afirma Erika.

Ajudar a explicar a engenheiros, mestres-de-obras e arquitetos como deve ser o ambiente para o deficiente físico faz parte da rotina da médica, que prega a independência do doente. "Assim que o paciente se torna meu, começo a cobrar que ele saia da casa dos pais, se dedique aos estudos, seja alguém produtivo. A deficiência custa muito caro. Para o paciente se sentir bem, tem de andar com as próprias rodas", acredita.

Ter vida sexual ativa é outro pré-requisito para freqüentar o consultório da ortopedista. "Tem de transar e ter prazer. Brinco que comigo eles entram na segunda adolescência, aprendem a lidar com o próprio corpo para ter uma vida sexual saudável", diz.

Depois de tantas conquistas, Erika afirma que muitos pacientes já entraram em seu consultório dizendo que nunca tinham sido tão felizes. "Nasci médica porque sou apaixonada pelo ser humano. Acho mesmo que muitos de meus pacientes se tornam pessoas melhores quando aprendem a superar as adversidades", diz a ortopedista.

Filha do cirurgião Samir Kalil, Erika teve de superar alguns obstáculos para se tornar uma ortopedista respeitada. Na Santa Casa, quando optou pela ortopedia, teve de aprender a sobreviver em um universo no qual apenas 1% dos profissionais são mulheres. Ainda na faculdade, aos 22 anos, engravidou do primeiro filho. "Minha mãe me ajudou muito, eu nunca quis abrir mão da maternidade pela profissão. Acho que filhos e carreira têm de andar juntos", diz.

Depois de cursos de especialização e da estruturação de uma carreira sólida em cirurgia de coluna, Erika terminou no início de 2002 seu doutorado na USP.

Atualmente, coordena, ainda na USP, pesquisas sobre células-tronco e lesões medulares. Essas células, extremamente versáteis, podem originar qualquer tipo de célula no organismo, dependendo do meio em que se encontram. No trabalho, que conta com a ajuda de setores do Hemocentro e da Radiologia Vascular do HC, 30 pacientes com mais de dois anos de lesão completa da medula e sem perspectiva de recuperação de movimentos e de sensibilidade tiveram células-tronco coletadas do próprio sangue. Depois de um complexo processo laboratorial, elas foram tratadas e reinjetadas na artéria que irriga a lesão medular.

Exames feitos em dezembro passado confirmaram que impulsos elétricos passaram a correr pela medula, outrora inativa, de 17 dos 30 pacientes que receberam as células. "Isso está longe de ser uma solução, mas abre perspectivas imensas", diz Erika. Apesar de ainda não ter sido comprovado cientificamente, alguns pacientes também voltaram a ter alguma sensibilidade. "Um paciente me ligou comovido, dizendo que estava sentindo a mão da mãe em seu braço; outra, dizendo, muito feliz, que voltara a sentir dor, mas nada foi comprovado cientificamente", diz.

A médica divide os confetes com seu parceiro e mestre, o também ortopedista Tarcísio Barros, da Faculdade de Medicina da USP. "Ele é um grande professor e me deixa extremamente emocionada toda vez que me diz que eu poderia operar a sua coluna", diz Erika.

Típico elogio de médico.

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