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17/02/2004 - 03h24

O consertador de coraçõezinhos

CAROLINA CHAGAS
free-lance para a Folha de S.Paulo

Cris Bierrenbach/Folha Imagem
Raio-X

Nome: Marcelo Biscegli Jatene, 42
Especialidade: cirurgião cardíaco pediátrico
Formação: graduação na Unifesp, pós-graduação na Faculdade de Medicina da USP (mestrado e doutorado)
Onde atua: Incor e Hospital do Coração

Na família Jatene todos sabem a quem recorrer quando o assunto é um espinho no pé ou uma farpa na mão. Quando um desses problemas aparece, Marcelo Biscegli Jatene, 42, é convocado. "Faço, então, como na sala de cirurgia: escalo um 'instrumentador' para esterilizar a agulha, encontrar a pinça, cortar o fio para ficar com a ponta bem certinha", conta.

Marcelo está acostumado a lidar com o coração de crianças, uma bombinha mais ou menos do tamanho da mão de uma criança, por onde circulam microvasos regados de sangue.

Filho do renomado cirurgião cardíaco Adib Jatene e de Aurice Jatene, Marcelo aprendeu a nadar com os próprios braços e conquistou um espaço de destaque quando o assunto é cirurgia cardíaca pediátrica.

Sua rotina compreende duas ou três cirurgias diárias, que em 70% das vezes são feitas em corações de pacientes de até seis anos. Os outros 30%, calcula, se dividem em crianças mais velhas (de até 12 anos) e mais raramente adultos.

A diferença da cirurgia em crianças e em adultos está na diversidade das cardiopatias e na manipulação dos instrumentos. Adaptados para o universo em desenvolvimento dos corações infantis, os bisturis, as máquinas e os fios são menores e exigem cuidado redobrado. "Usamos linhas de sutura finas como um fio de cabelo", diz Marcelo.

Os índices de sucesso aumentam a cada ano. O número de casos bem-sucedidos da "operação de Jatene" —procedimento bastante comum em recém-nascidos— é superior a 93%. Criada há algumas décadas pelo pai de Marcelo, essa cirurgia consiste na correção da transposição das grandes artérias, que em algumas crianças nascem invertidas.

Do alto de seus 1,90 m e 108 kg, Marcelo já teve de operar o coração de um prematuro de 440 g. "Foi o menor bebê que tive na mesa de cirurgia, e infelizmente ele não resistiu, pela gravidade do quadro geral", diz o cirurgião, que se orgulha de ter em seu currículo casos bem-sucedidos de prematuros entre 500 g e 600 g.

Formado pela Escola Paulista de Medicina (atual Unifesp), Marcelo reconhece que, durante os primeiros anos da faculdade, o fato de ser filho do ex-ministro da Saúde chamava a atenção. "Tem a história de filho deste e filho daquele, são muitos filhos de médicos no curso. Na residência, no entanto, se não tiver competência, não tem jeito", afirma.

O fato de ser o caçula da família, que já contava com dois médicos (Fábio, 49, cirurgião cardíaco e torácico, e Ieda, 47, cardiopediatra; Adib Jatene tem mais uma filha, Iara, 45, arquiteta), talvez tenha diminuído um pouco a pressão sobre ele.

Com exceção de algumas áreas que exigem muita verba, como a parte de assistência circulatória mecânica (mecanismo que mantém o sistema circulatório da criança artificialmente em cirurgias), o Brasil pode ser considerado um país de ponta na cirurgia cardíaca pediátrica, ao lado dos EUA, da Inglaterra e da França. "Temos resultados extremamente satisfatórios", diz o cirurgião.

O maior problema no Brasil, segundo Marcelo, é a falta de leitos preparados para cirurgia cardíaca pediátrica do SUS. "No Incor, temos uma espera permanente para cirurgias de algo em torno de 800, 900 crianças", diz ele. De cada mil crianças nascidas em todo o mundo, de cinco a oito apresentam problema cardíaco. "Não temos como atender tamanha demanda porque o maquinário e a estrutura são muito específicos, e a cirurgia, por conta disso, muito cara", diz.

Para aliviar as tensões, o especialista em sutura de pequenos corações prefere a imensidão azul. Influenciado pelo filho mais novo, Otávio, 11, começou a surfar. "É um esporte que desenvolve o nosso melhor, nos faz conviver com adversidades, com a natureza e nossos limites", explica.

Há algum tempo, começou a se disciplinar para passar pelo menos dois fins de semana no litoral norte paulista. "Minha mulher, Bia, brinca que 15 dias é o máximo que a salinidade do meu sangue consegue resistir sem precisar se renovar."

Marcelo fala com carinho das outras filhas, Natália, 15, e Marina, 14, que são, como ele um dia foi, boas alunas. "Natália pensa em medicina", entrega, sem esconder uma pontinha de orgulho.

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