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30/03/2004 - 02h53

Leituras Cruzadas: Uma no cravo, outra na ditadura

OSCAR PILAGALLO
especial para a Folha de S.Paulo

A Revolução dos Cravos, que completa 30 anos no mês que vem, foi o sonho de uma noite de verão das esquerdas. A partir de 25 de abril de 1974, comunistas e socialistas do mundo todo voltaram as atenções para Portugal e acompanharam com debates entusiasmados os desdobramentos do golpe que, naquele dia, derrubou a longa ditadura salazarista, iniciada em 1926. Envolta em romantismo, a revolução conquistou corações e mentes antifascistas.

Jornal de Notícias do Porto
Soldados portugueses durante a Revolução dos Cravos (1974)

A efemeridade do sonho pode ser avaliada por um fato singelo, ocorrido a léguas de Lisboa. No Brasil, em pleno regime militar, com o presidente Geisel recém-empossado, as oposições olhavam para Portugal com um misto de satisfação, pelo que lá se passava, e melancolia, pelo que cá se enfrentava. Esse sentimento foi captado por Chico Buarque: "Sei que estás em festa, pá / Fico contente / E enquanto estou ausente / Guarda um cravo para mim". A canção, previsivelmente, foi proibida pela censura e, pouco depois, a letra já não fazia mais sentido na perspectiva do compositor. A revolução dera uma guinada e, em 1978, a música ganhou a versão desiludida que hoje cantamos: "Foi bonita a festa, pá / Fiquei contente / E inda guardo renitente / Um velho cravo para mim".

Entender as razões de Chico Buarque é entender a Revolução dos Cravos. A dinâmica dos acontecimentos traça um paralelo com a Revolução Francesa. Houve uma primeira fase, de menos de um ano, marcada por um conservadorismo moderado. Foi quando, em meio à euforia, os portugueses se lambuzaram de democracia. O segundo momento, em que prevaleceu o radicalismo de esquerda, foi frenético e fugaz. Durou pouco mais de um verão, o "verão quente de 75", como seria chamado. O governo nacionalizou os bancos e interveio fortemente na economia. Por fim, na terceira etapa, predominou a reação moderada, desviando para a direita o curso revolucionário —daí o desencanto de Chico.

A comparação com a revolução de 1789 não deve ir além da trajetória comum dos dois eventos históricos: a Revolução dos Cravos não provocou mudanças estruturais profundas na sociedade portuguesa. Mesmo sem produzir algo comparável ao fim do feudalismo, no entanto, o movimento dos militares serviu —ainda que involuntariamente para vários de seus líderes— de ponto de partida para a construção do país que se conhece hoje: tão longe dos ideais comunistas quanto do Estado Novo português.

Embora tenha tido Lisboa como epicentro, a revolução só pode ser compreendida como resultado do fracasso do colonialismo na África. É nessa tecla que, acertadamente, insiste Lincoln Secco em "A Revolução dos Cravos e a Crise do Império Colonial Português" (296 págs, R$ 38,60), cujo lançamento, em co-edição com a Cátedra Jaime Cortesão, marca a estréia da Alameda Casa Editorial. Originalmente tese de doutorado na USP, o livro de Secco defende o argumento de que a revolução, apesar do caráter nacional, é atlântica. "Sem respeitar essa geografia de idéias, pouco se entende do processo todo", afirma.

As Forças Armadas portuguesas enfrentavam uma situação delicada. Os militares combatiam numa guerra colonial sem perspectivas reais de vitória. Sabiam que a derrota para os movimentos de libertação nacional, surgidos no início dos anos 60 em Angola e Moçambique, era apenas uma questão de tempo. A guerra mobilizava exércitos de jovens. Quase 15% da população de Portugal serviu nas Forças Armadas nas colônias, segundo estimativa citada por Secco. A maioria se encontrava desmoralizada: de um lado, o governo português os responsabilizava pelo mau desempenho nos combates; de outro, eram objeto do repúdio internacional.

Naquela altura, Portugal vivia a situação contraditória de ser um império colonial subdesenvolvido e periférico. Essa realidade foi determinante para o desfecho da crise. Como lembra o historiador Kenneth Maxwell, "Portugal foi a última potência européia a se apegar obstinadamente à panóplia da dominação formal". E por quê? Porque, ao contrário de outros países europeus, não tinha condições de pagar pelo neocolonialismo. "A fraqueza econômica em seu próprio país fez com que a intransigência na África fosse inevitável", diz Maxwell num ensaio publicado em "Chocolate, Piratas e Outros Malandros" (Paz e Terra, 472 págs., R$ 48).

Secco não enfatiza tanto o aspecto econômico, mas concorda que o ultracolonialismo lusitano estava mesmo num impasse. Devido à impossibilidade de vencer os rebeldes, restava ao governo português a solução política: negociar com as guerrilhas. Essa saída, porém, só se viabilizaria com uma ruptura, "posto que os interesses que se opunham ao fim do colonialismo eram dominantes no aparelho de Estado". Essa era a lógica do golpe de 25 de abril.

O fim da ditadura salazarista começou a tomar forma com a publicação de um livro. Best-seller desde o lançamento, nas semanas que antecederam a revolução, "Portugal e o Futuro", de António de Spínola, abalou o regime. O general defendia nada menos que o reconhecimento do direito à autodeterminação das colônias. Angola, Moçambique e outras colônias deveriam ter, advogava ele, instituições democráticas e governos eleitos pela maioria.

Atrás do indefectível monóculo, Spínola parecia insuspeito para defender a tese. Respeitado na hierarquia militar, o general era um homem conservador, cujo pai fora amigo de Salazar. Daí o impacto da defesa da democracia em seu livro, que semeou pânico na direita. "Inevitavelmente, a opinião pública concluiu que nenhum governo poderia aceitar de bom grado a participação popular em África, ao mesmo tempo que a negava em Portugal", escreve Maxwell em "A Construção da Democracia em Portugal" (Editorial Presença, 272 págs, importado). "A linguagem frontal de Spínola fez dele um herói e fragilizou [Marcello] Caetano", que em 1968 herdara a ditadura de um Salazar adoentado e sem condições de governar.

Enquanto o general finalizava o texto, oficiais de médio escalão se preparavam para agir. O Movimento das Forças Armadas (MFA) nascera pouco antes do êxito editorial de Spínola, quando, no final de 1973, um pequeno grupo de capitães e militares de patentes intermediárias compareceu a um churrasco nos arredores de Évora, pequena cidade próxima a Lisboa. Esses oficiais subalternos, julgando-se vítimas de injustiças profissionais, estavam mais preocupados com reivindicações corporativas do que com os destinos da pátria. Foi só aos poucos que o Movimento dos Capitães, como também era conhecido, formou um núcleo a partir do qual se esboçaram um plano de tomada do poder e um projeto nacional.

As trajetórias dos capitães revoltosos e do general dissidente confluíram para o mesmo ponto em 25 de abril. Durante aquele dia, os jovens militares haviam dominado a capital, numa ação que, salvo uma pequena escaramuça, foi tranqüila a ponto de uma coluna de carros blindados sob o comando dos rebeldes respeitar um semáforo vermelho, como registra o filme "Capitães de Abril" (França/Portugal, 2000), de Maria de Medeiros, disponível em algumas locadoras. Nos canos dos fuzis, a população espontaneamente colocava cravos, que dariam o nome à revolução.

Acuado, Caetano cedeu, mas não sem antes conseguir que fosse atendida uma última exigência: entregar o governo a Spínola para evitar que "o poder caísse na rua", como disse. Quando o general apareceu em cena, a queda do regime já era fato consumado. Devido à sua proeminência, que contrastava com o anonimato dos jovens militares, o general receberia méritos indevidos pelo golpe. Seu papel no colapso do salazarismo foi superestimado, avalia Maxwell. Nos meses que se seguiram, Spínola, na condição de presidente provisório, não deu a devida importância ao MFA. Enquanto os capitães se inclinavam para a esquerda, o general revelava seu conservadorismo. Aberto o abismo entre as duas alas do novo governo, venceu a que tinha mais força. Spínola renunciou cinco meses mais tarde e, após uma fracassada tentativa de golpe no início do ano seguinte, seguiu para o exílio no Brasil. Estava livre o caminho para a esquerda.

O Partido Comunista, de Álvaro Cunhal, e o Partido Socialista, de Mário Soares, constituíam as principais forças civis da revolução. Mas a disputa pelo poder e as divergências históricas entre as duas legendas eram maiores do que a disposição de compartilhar um governo de esquerda. Em meados de 1975, um episódio simbolizou a incompatibilidade entre comunistas e socialistas.

Na onda de encampações durante o período de radicalização, o jornal "República", que vinha assumindo posições próximas dos socialistas, foi ocupado por comissões de trabalhadores com a aquiescência dos comunistas. Em meio a tantas ações de impacto, o caso seria menor, não fosse a polêmica que provocou além das fronteiras de Portugal. Na França, o debate dividiu a intelectualidade, como relata o jornalista lisboeta José Rebelo em "O 25 de Abril nos Media Internacionais" (Edições Afrontamento, 312 págs, importado). Tudo começou com um editorial no "Le Monde" que relativizou o conceito de liberdade de imprensa, argumentando que, num contexto revolucionário, ele é "ambíguo". No "Le Nouvel Observateur", o sociólogo Edgar Morin rebateu com firmeza. Denunciou a incapacidade dos que se dizem de esquerda para enfrentar a dicotomia revolução/liberdade de imprensa. Denunciou também a falácia de opor o princípio liberal, "que não admite nenhum atentado contra as liberdades", ao princípio progressista, "que subordina as liberdades de expressão ao triunfo da revolução". Citando o caso soviético, ele conclui: "Não há progressão das liberdades ditas reais associada à perda das liberdades ditas formais. Qualquer repressão no plano da informação traduz-se por uma opressão no plano da sociedade".

Do ponto de vista da esquerda, a Revolução dos Cravos terminou em 25 de novembro de 1975, quando militares ditos profissionais, sob o comando do tenente-coronel Ramalho Eanes, a pretexto de evitar um golpe da ala esquerda das Forças Armadas, assumiram o poder. Como em 25 de abril, o golpe da direita também não foi violento. Talvez porque o radicalismo não tivesse mais energia para reagir. Nos dois casos, não havia mais o que ser destruído.

Trinta anos depois, ainda se pergunta por que a revolução não deu certo. Maxwell alinha alguns fatores: menciona o fracasso da aliança entre a esquerda civil e os militares radicais e enfatiza a importância que tiveram as vítimas da revolução, os pequenos agricultores do Norte, ameaçados pelas desapropriações. Eles se opunham a tudo o que ocorria em Lisboa. Afinal, a Revolução dos Cravos fora um fenômeno urbano num país tradicionalmente rural.

Para Florestan Fernandes, socialista que, a partir do Brasil, estava comprometido com o movimento antifascista em Portugal, o fracasso da revolução se encontra em suas próprias raízes. Lincoln Secco, ao resumir a posição do sociólogo na coletânea "Florestan ou o Sentido das Coisas" (Boitempo, 263 págs., R$ 29), afirma: "Em Portugal, o processo revolucionário foi posterior ao golpe de Estado, de modo que preservou as possibilidades da direita, reciclada e travestida, de conseguir deixar o povo como simples figurante. Em Portugal, a revolução marchava perigosamente de mãos dadas com a contra-revolução".

Só uma perspectiva muito sectária, porém, negaria o fato de que, apesar de não ter vingado, a Revolução dos Cravos deixou um saldo positivo. É essa a posição de Francisco Martins Rodrigues, em "Abril Traído" (Edições Dinossauro, 120 págs., importado). O autor português, simpático à causa radical, diz sobre o golpe de 25 de novembro: "Foi obra de uma amálgama de forças social-democratas, liberais e reacionárias, animadas pelo Partido Socialista e apadrinhadas pela social-democracia alemã e pelo embaixador [norte-americano, Frank] Carlucci". Mas entre afirmar que a revolução foi traída e não reconhecer que algo positivo restou da experiência vai uma distância muito grande.

André Malraux, uma referência para a intelectualidade de esquerda, colocou nos seguintes termos a equação: "Os socialistas portugueses provaram ao mundo —e pela primeira vez na história— que os mencheviques também eram capazes de vencer os bolcheviques". Os mencheviques eram a facção não-leninista do partido que fez a Revolução Soviética, em 1917. Minoritários, eles defendiam o estabelecimento de um regime liberal e capitalista como etapa precursora de uma sociedade socialista.

Os comunistas estrilaram: a análise de Malraux, endossada por Mário Soares, que se tornou primeiro-ministro em 1976, "rebaixaria" o 25 de Abril a uma revolução burguesa. Mas foi isso, porém, o que sobrou da revolução. "Seja isso pequeno ou grande, [a revolução] levou a cabo aquilo que teria de ser feito: a proclamação dos ideais do liberalismo e do republicanismo", segundo Secco. Ou, nas palavras de Maxwell: "A democracia portuguesa contemporânea reside em parte na sublimação dessa experiência de conflito".

Oscar Pilagallo, 48, é jornalista e autor de "A História do Brasil no Século 20" (em cinco volumes da série "Folha Explica"), "O Brasil em Sobressalto" e "A Aventura do Dinheiro", todos pela Publifolha. Aproveitou a efeméride para aprender a harmonia de "Tanto Mar".

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