Folha Online sinapse  
30/03/2004 - 02h52

Leia trecho de lançamento sobre a Revolução dos Cravos

da Folha de S.Paulo

Leia abaixo a introdução de "A Revolução dos Cravos e a Crise do Império Colonial Português" (Alameda Casa Editorial/Cátedra Jaime Cortesão, 296 págs., R$ 38,60), de Lincoln Secco, livro citado na seção Leituras Cruzadas no Sinapse de 30 de março de 2004.

Introdução

O povo português tem, como o galego, a fama de ser um povo sofrido e resignado, que tudo suporta sem protestar, a não ser passivamente. E, no entanto, há que ter cuidado com povos como esses. A ira mais terrível é a dos mansos.
Miguel Unamuno


Está o método a montante ou a jusante da pesquisa científica? Essa era a pergunta com a qual um geógrafo dos velhos tempos instigava os alunos em suas aulas. Foi ainda este mesmo professor, Milton Santos, que mostrou que as idéias compõem o espaço. Porque sua geografia não era mais apenas aquela de Vidal de La Blache. Mas uma geografia nova. E essa noção simples e surpreendente mudou os horizontes desta tese. Sim, porque já havia uma tese. Ou, antes, uma idéia. E nas pegadas de outro professor de antanho, Eduardo D'Oliveira França, pode-se aprender que uma tese é uma idéia e um método a serviço dessa idéia. Talvez, a idéia de um método, como ele diria. O das comparações (méthode dangereuse, segundo Braudel). E o da longa duração.

Joaquim Barradas de Carvalho espantou-se, certa vez, com o fato de a discussão sobre a "longa duração" ter sido feita, durante quase trinta anos, sem colocar em causa a história do pensamento. Por isso, argumentava Barradas de Carvalho (1981), "a história política ficou, entre outras razões, talvez sob a influência de uma teoria marxista mal compreendida, estreitamente ligada à curta duração. A história política era a história événementielle por excelência".

A tarefa que se deve propor numa história vista a partir das idéias (das idéias políticas) é a de identificar as formas pelas quais uma dada sociedade (ou alguns de seus grupos ou classes) procurou dar respostas aos problemas que julgava mais importantes nos períodos críticos da sua história; em seguida, deve-se objetivar a interação entre essas representações e a realidade vivenciada (cf. Rosanvallon, 1995).

Por que partir de uma crise, de uma revolução? Ela pode condensar toda uma história de longa duração caracterizada por tentativas de superação de uma crise histórica. O momento crítico pode ser tanto um ponto de chegada quanto um ponto de partida. A história portuguesa do ottocento e do novecento parece-se com um vale. Com suas vibrações e acontecimentos políticos, econômicos, é verdade. Tal qual o curso do rio que procura insistentemente rasgar as montanhas em busca da tranqüilidade. O rio, todavia, tem seu curso determinado pela conformação do relevo. Por mais que insistentemente o desgaste e também o mude.

Entre duas formações montanhosas, nos dois picos, o historiador poderá sempre observar a ampla depressão, um vale de extensão razoável. Exemplos: a França do século XIX, tomando como ponto de partida a crise do Antigo Regime e a Grande Revolução. Gramsci posicionou-se em 1871 para entender o 1789! Ou Portugal nos séculos XIX e XX, tomando como momento crítico o fim do Terceiro Império e a Revolução dos Cravos. Não se poderia fazer o mesmo com a Rússia escolhendo tanto o ano de 1917 quanto o ano de 1991? Enfim, trata-se de saber até que ponto a revalorização do que Michel Vovelle chamou "acontecimento traumatismo" pode ser feita com uma "metodologia de ponta". Ou, para falar com Chesneaux, se a longa duração não é ela mesma política. Assim, deveríamos pesquisar o que ajuda e o que atrasa o tempo das flores e da primavera. Esse tempo de "ritmos fortes", como diria Florestan Fernandes.

O ponto crítico só pode ser visto, em sua plenitude de significado, na longa duração, como síntese das contradições que acompanharam toda uma trajetória. Dessa forma, ao tempo quase imóvel da mentalidade dominante, reforçada por estruturas sociais recorrentes, superpõe-se uma conjuntura crítica, lentamente ritmada, em que as estruturas em crise reproduzem-se incorporando disfunções que levam ao paroxismo da Revolução (tempo curto). As estruturas são sempre históricas. E seus dinamismos internos assumem uma nova condição formadora de novos sistemas dependendo de seu valor estrutural interno (Fernandes, 1979, p.60).

A estrutura, para o historiador, nada tem daquele deus ex machina do estruturalismo. Ela apenas significa as realidades que resistem mais ao tempo. Como se sabe, a duração nunca foi um conceito teórico definido de forma precisa. Braudel não se interessava muito por definições teóricas acabadas. A noção de duração refere-se ao processo pelo qual os homens formam um conjunto de experiências, e não outro, que continua a ser reiteradamente funcional para sua existência material e espiritual. A duração adquire contornos estruturais, mostrando que também a história interessa-se pelas estruturas, mas por estruturas que se transformam.

A questão é: pode tal duração ser encontrada no plano das idéias? O próprio Braudel disse: "No plano das idéias, os homens do século XVIII são nossos contemporâneos" (ibidem), embora não o sejam no campo das estruturas do cotidiano. Eis a duração nas idéias.

Plano

Nas partes desta obra, o jogo entre as prisões de longa duração, as mesmas e reiteradas tomadas de consciência de uma crise permanente, e o aceleramento (aparente ou real) do tempo histórico divide-se em algumas etapas. Procurei condensar aquelas sobrevivências ideológicas dentro de capítulos com nomes de continentes, numa alusão respeitosa a uma geografia que outrora encantava os historiadores. E terminar tudo com uma fusão das idéias sobre eles (especificamente Europa e África) na "Geohistória". O nome é tão somente uma metáfora. Não se trata de uma história espacial e sim de uma pequena história das representações espaciais.

Da perda da América, passaram os portugueses a buscar a miragem de "novos Brasis" no continente negro. E na iminência da perda da África, voltaram-se para o que, de fato, sempre buscaram: a Europa. Ou a ordem liberal que ela representava ou passou a representar. Daí por que o leitor encontrará uma parte dedicada à análise da União Européia.

Ocorre que as mudanças dos discursos e atitudes políticas lusas pareceram mais variações de roupagem que de conteúdo. Aqueles portugueses que eram adeptos do republicanismo, do socialismo moderado, ou mesmo de um comunismo contido pelas suas circunstâncias históricas na geopolítica que lhe tolhia seu ideal revolucionário, apenas reeditavam teses liberais do século XIX, como veremos. Identificavam-se, paradoxalmente, com os que, na assim chamada "África lusófona", queriam (ou diziam querer) a independência total. Como se sabe, não haveria idéia de império, nem o real imperialismo periférico sem as colônias e os trabalhos forçados que lá se operavam. As economias da metrópole e das colônias estavam interligadas.

Também seus destinos. As movimentações políticas coloniais criaram as condições da Revolução dos Cravos. As relações sociais (o estatuto colonial) já não suportavam a pressão daquelas forças de produção que precisavam desenvolver-se no mercado mundial, fora da carapaça política do império. Não se tratava de uma necessidade férrea, mas histórica. Como hoje acontece em África por causa da sua marginalização, a superação do colonialismo poderia ter sido adiada sine die ao custo do perecimento de seus povos. Mas houve resistência. Assim como se acredita que, na África atual, também uma história de ritmos fortes poderá extrair dos seus próprios dinamismos internos as bases da criação de um novo padrão civilizatório.

Ora, como se tentará demonstrar aqui, especialmente na Parte II, a aceleração do tempo histórico não conduz, por si mesma, à superação da condição neocolonial ou dependente. Florestan Fernandes, ao avaliar os impasses da Revolução Portuguesa, tentou compará-la com outras vias de transição da condição dependente e associada à independência nacional (Secco, 1998). Essa independência, em países sob os ditames e os imperativos do capital oligopolista internacional, só poderia se "completar" com o socialismo, passando da "revolução dentro da ordem" à "revolução contra a ordem". Cuba situouse no caso extremo, em que a consciência social revolucionária foi produzida pela própria revolução (Fernandes, 1979). Peru, Chile, Nicarágua e os países revolucionários africanos não lograram levar suas revoluções até o fim e até o fundo. Veremos como esses exemplos encantaram setores das Forças Armadas portuguesas. Mas revoluções não podem imitar modelos. Precisam encontrar suas forças e seu destino na sua própria história.

A jusante das revoluções, nem sempre está o socialismo. Assim como a montante, nem sempre residem o capitalismo e a dominação de classe "burguesa". As revoluções de 1989 solaparam essas certezas. Derrubaram o socialismo realmente existente e implantaram a democracia liberal e a economia de mercado. Assim, situar as revoltas na longa duração não implica aprisioná-las no passado, mas entender por que umas logram prosseguir até o fim e até o fundo, extraindo com vigor o neocolonialismo de suas economias, e de suas consciências e outras se paralisam em diversas etapas intermediárias. Visão teleológica? Talvez. Afinal, por que as revoluções deveriam ir até a algum lugar? É o risco que se deve correr. As lideranças radicais da Revolução Portuguesa tentaram transformar a revolução "antifascista" numa tentativa de esboroamento completo da ordem social competitiva. Fatores conjunturais e até mesmo equívocos e ilusões compartilhados por diversos setores políticos, civis e militares contribuíram para a solução européia, social-democrata e liberal. Mas, essencialmente, a impossibilidade de mudar além dos marcos das reformas capitalistas do capitalismo reside em projeções que dominaram as mentes das elites políticas das classes dominantes nos últimos dois séculos. E a ideologia dominante é sempre a da classe dominante.

Essa mesma mentalidade se espraiou pelos setores de oposição a Salazar. A esquerda de cores mais vermelhas não pôde arrancar esse ideário pela raiz.

O historiador não deve dizer se isso era desejável. Pode afirmar que, talvez, fosse possível. Mas, também, que era improvável. Determinações estruturais condicionam as escolhas. Limitam. Mas não levam ninguém a um lugar previsto. Porque os homens, dizia Marx, fazem a história sob as circunstâncias legadas pelo passado. Mas, enfim: eles fazem história!

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