Folha Online sinapse  
27/04/2004 - 02h50

Duas vozes do esquerdismo

SÉRGIO DÁVILA
da Folha de S.Paulo

Nos últimos dias chegaram às livrarias do Brasil as obras mais recentes de dois arautos do esquerdismo norte-americano, o agitador cultural Michael Moore e o lingüista Noam Chomsky. Essa vertente político-literária deve ser avaliada de duas maneiras: de dentro e de fora dos EUA.

De dentro dos EUA, é muito bem-vinda, e seus pecadilhos podem ser minimizados, pois estamos falando de um país que, desde a "eleição" (na verdade, uma decisão da Suprema Corte) de George W. Bush à Presidência (2000), deu uma guinada à direita que só foi reforçada pelo ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, pela Guerra do Afeganistão de 2001 e pela invasão do Iraque de 2003.

Tal guinada se refletiu nas relações exteriores, no jornalismo, em Hollywood, no comportamento —e o fato de o ministro da Justiça, John Ashcroft, ser um evangélico fundamentalista de ultradireita e de o governo dar mais verbas a escolas públicas que NÃO defendam o uso de camisinha como método anticoncepcional é, mais do que anedota, "zeitgeist" (espírito de uma época).

A coisa começa a mudar, lentamente, carregada pelo fracasso da atuação norte-americana no Iraque e pelas investidas do democrata John Kerry contra seu oponente nas eleições de novembro. A tendência é que o país vá voltando ao centro.

Enquanto não volta, quem tem um olho mais à esquerda é rei. É o caso de Michael Moore. Autor do best seller "Stupid White Men - Uma Nação de Idiotas" e do documentário "Tiros em Columbine", o roliço agitador de Flint, no Michigan, lavou a alma da América liberal ao discursar contra a invasão do Iraque na cerimônia do Oscar do ano passado, quando a maioria se calava.

E Chomsky, a estrela do MIT (Massachusetts Institute of Technology), foi a única voz entre a intelectualidade norte-americana a se levantar já nos dias seguintes ao 11 de Setembro para questionar a unanimidade e perguntar: "O que nós [norte-americanos] afinal fizemos para merecer tamanho ódio?".

Já de fora dos EUA, o papo é outro. Os brasileiros precisam ler ambos os autores da mesma maneira com que os porcos-espinhos fazem amor: com muito cuidado. A dupla defende sua posição ideológica, e tem todo o direito de fazê-lo, mas encará-los como imparciais é meio caminho para ser logrado.

"Cara, Cadê o Meu País?", de Moore, é garantia de diversão, por seus textos bem escritos, leves e engraçados. No capítulo 10, por exemplo, ele ensina o leitor "como conversar com seu cunhado conservador" —figura que equivale em São Paulo ao motorista de táxi malufista—, dando argumentos para cada chavão conservador. Pena que ele faça o mesmo, usando chavões liberais como defesa. E, pior, varrendo para debaixo do tapete os fatos que comprometam a lógica de sua conclusão, como bem mostrou Marcio Aith, editor de Dinheiro da Folha de S.Paulo em resenha publicada na Ilustrada no último dia 10.

"O Império Americano - Hegemonia ou Sobrevivência", de Chomsky, é mais bem argumentado (e de escrita mais sutil e refinada), mas sofre do mesmo mal. Ao explicar o caráter belicoso dos EUA, o autor cai na "Síndrome do 'Eles'". "Eles" seriam os culpados por todas as aflições aplicadas pelo país no resto do mundo; reúnem-se em Washington e decidem as estratégias e pagam qualquer preço para que os EUA continuem a ser o império hegemônico que são.

Não existe um "Eles", como o leitor sabe. "Eles" somos todos nós, mas assim a explicação fica mais difícil e menos impactante.

Sérgio Dávila, 38, é repórter especial da Folha de S.Paulo, colunista do UOL News e autor dos livros "Nova York - Antes e Depois do Atentado" (Geração, 2002) e "Diário de Bagdá - A Guerra do Iraque Segundo os Bombardeados" (DBA, 2003).

Leia mais
  • Leituras Cruzadas: A coalizão dos que não crêem
  • Leia trecho de "O Império Americano", de Chomsky

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