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27/04/2004 - 02h52

Leituras Cruzadas: A coalizão dos que não crêem

SERGE SCHMEMANN
do "New York Times Book Review"

É difícil acreditar que George W. Bush está na Casa Branca há apenas três anos. A impressão que se tem é que já se passaram anos desde que começamos a viver num mundo novo, no qual seu governo é estreitamente identificado com novas paixões, novos temores e novos inimigos.

Arko Datta - 19.set.2003/Folha Imagem
Soldado dos EUA observa janela de seu jipe, atingido por explosivo em Tikrit, no Iraque

A razão principal disso, é claro, é o 11 de Setembro, que efetivamente dividiu nossas vidas em "antes" e "depois", relegando o século 20, com suas guerras quentes e frias, para um passado envolto em neblina. George H.W. Bush e Bill Clinton administraram as conseqüências imediatas da queda do comunismo, mas o fizeram quando a premissa ainda era que a maior ameaça ao mundo tinha sido eliminada, quando não parecia haver nenhuma urgência em definir uma nova ordem pós-comunista.

Para melhor ou para pior, sobrou para George W. Bush propor essa nova ordem, e ela não saiu da maneira como muitos esperavam —um mundo no qual os arsenais seriam drasticamente reduzidos e no qual as democracias cooperariam para solucionar conflitos, garantir os direitos humanos e proteger o ambiente.

Em lugar disso, Bush e sua equipe desdenhosamente jogaram a dissuasão no lixo e declararam que os EUA têm o direito de assegurar sua própria segurança como melhor lhe convier, até mesmo com guerras preventivas. Os EUA triunfais do século 21 fariam uso das instituições multilaterais unicamente quando interessasse aos objetivos norte-americanos. Não apenas isso —a garantia de sua segurança exigia que os EUA impusessem seus valores democráticos, a começar pelo Oriente Médio.

Pode ser que algum dia comprovemos que Bush tinha razão e que uma cadeia harmoniosa de democracias amistosas se estenda da Ásia Central até o Mediterrâneo. Por enquanto, porém, a nova ordem norte-americana gerou um maremoto de antiamericanismo, com os Estados Unidos vistos em alguns setores como uma ameaça maior à paz mundial do que a própria Al Qaeda.

Surgiram divisões profundas entre os EUA e seus aliados; a política norte-americana ameaça prejudicar a busca de unidade da Europa; os muçulmanos em todo o mundo se voltaram contra os EUA; muitos líderes asiáticos hoje buscam na China sua segurança econômica e política, e os próprios norte-americanos se polarizaram em sua atitude em relação ao resto do mundo. A "guerra ao terrorismo" ficou atolada num Iraque anárquico; Guantánamo virou sinônimo de violação dos direitos civis, e tiranos aproveitaram o conceito de guerra preventiva para justificar a repressão a seus opositores, agora rotulados como terroristas.

A ascensão de uma nova ordem tão contenciosa e do homem que tão inesperadamente a lançou geraram uma biblioteca considerável de obras condenatórias, ainda mais agora que a campanha de reeleição de Bush vem ganhando fôlego. "America Unbound" (América desatada, em tradução livre) pode ser descrito como relativamente equilibrado, mas os outros não deixam dúvida quanto ao que pensam. Desde a esperança declarada por George Soros de que seu livro contribua para tirar Bush do poder até a imagem que Robert Jay Lifton traça de uma "sinergia maligna" entre os EUA e a Al Qaeda, "quando, em seu fanatismo mútuo, os líderes islâmicos e os norte-americanos parecem agir de comum acordo". Emmanuel Todd contribuiu com a idéia de que os Estados Unidos, a seu ver o verdadeiro império e eixo do mal, já estariam perto do colapso.

Seja o que for que possamos pensar sobre a nova ordem, Ivo H. Daalder e James M. Lindsay, dois veteranos do Conselho Nacional de Segurança de Clinton que hoje estão, respectivamente, no Instituto Brookings e no Conselho de Relações Exteriores, afirmam que o que Bush fez não foi nada menos que "uma revolução". "America Unbound" é o estudo mais importante e de mais longo alcance nesse conjunto —entre outras razões, porque seus autores se dão muito trabalho para desenvolver a tese de que o presidente não é um mero fantoche pouco inteligente manipulado por uma cabala de neoconservadores e falcões da velha guarda, mas um mestre manipulador. "George W. Bush liderou sua própria revolução", declaram.

É um elogio e tanto para um patrício pródigo que se metamorfoseou em texano e cristão que reencontrou uma fé intensa e que chegou à Casa Branca, com dificuldade, como porta-estandarte dos adeptos de Reagan e dos neoconservadores. Embora tenha demonstrado desdém pelas instituições e pelos tratados internacionais e tenha lançado algumas farpas contra a Rússia, a China e o "eixo do mal", pouca coisa no Bush do início de seu mandato poderia levar a crer que ele nutrisse a ambição de remodelar o mundo, ou mesmo que tivesse interesse real pela política externa.

Foi o 11 de Setembro, escrevem Daalder e Lindsay, que funcionou como agente catalisador para Bush fundir em uma só visão e missão aquilo que pode ser descrito como o nacionalismo afirmativo de Dick Cheney e Condoleezza Rice, a visão neoconservadora de Paul Wolfowitz e Richard Perle e sua própria visão, formada muito antes do 11 de Setembro, de que o sucesso requer uma determinação clara e a disposição de fazer uso do poder.

O fato de essa missão poder ser apreendida como uma forma nova e perniciosa de imperialismo era algo que passava totalmente ao largo de Bush. Segundo Daalder e Lindsay, os pontos de vista de Bush se baseiam em dois pilares. "O primeiro diz que, em um mundo perigoso, a melhor —se não a única— maneira de assegurar a segurança dos EUA consiste em se libertar das restrições impostas por amigos, aliados e instituições internacionais", afirmam. O segundo é que "os Estados Unidos devem sair para o mundo externo de maneira agressiva, buscando monstros para destruir". Não vinha ao caso se Saddam Hussein —ou Iasser Arafat, ou o Irã, ou a Coréia do Norte— tinham ou não alguma coisa a ver com a queda das torres gêmeas: eles eram o mal global que os EUA tinham o dever de destruir.

Era inevitável que uma política externa expressa em símbolos bíblicos, que deixa as sutilezas de lado e é proposta por texanos, porta-vozes da indústria petrolífera e neoconservadores, fosse vista como insuportável pelos liberais, os internacionalistas e os representantes da Nova Inglaterra.

Dá para desconfiar que, de vez em quando, até mesmo George Bush, pai, lance um olhar de receio sobre as políticas adotadas por seu primogênito.

Mesmo assim, é difícil explicar o grau de repúdio que Bush júnior e seu governo suscitam entre os liberais norte-americanos, normalmente racionais. Os ataques a ele feitos nesses livros variam em termos de temática e qualidade, e é provável que os defensores de Bush, não sem alguma dose de razão, desprezem os escritores cujas propostas são mais extremas, qualificando-os como inerentemente alérgicos a qualquer manifestação de poder norte-americana. Entretanto, a urgência com que eles soam o alarme é algo que exige atenção. A história já nos mostrou aonde pode nos conduzir o poder não submetido a restrições.

Entre os livros aqui mencionados, "America Unbound" é o que merece ser lido mais atentamente. O trabalho de pesquisa que o fundamenta é admirável, os argumentos são bem apresentados, e a ausência de estridência acrescenta uma autoridade considerável ao retrato feito de Bush como presidente "cuja visão de mundo simplesmente não abre espaço para que outros ponham em dúvida a pureza das razões que movem os EUA".

Na ordem de minha preferência, "The Sorrows of Empire" (Mágoas do império, em tradução livre), de Chalmers Johnson, estudioso da Ásia e ex-consultor da CIA, hoje crítico acirrado da política militar de Washington, é um estudo exaustivo —em ambos os sentidos do termo, às vezes— da ampliação do controle militar e econômico dos EUA sobre o mundo.

Saiba mais:

"America Unbound - The Bush Revolution in Foreign Policy", de Ivo H. Daalder e James M. Lindsay; The Brookings Institution, 246 págs., US$ 22,95

"The Sorrows of Empire - Militarism, Secrecy, and the End of the Republic", de Chalmers Johnson; Metropolitan Books, 207 págs., US$ 25

"The Bubble of American Supremacy - Correcting the Misuse of American Power", de George Soros; PublicAffairs, 207 págs., US$ 22

"Superpower Syndrome - America's Apocalyptic Confrontation with the World", de Robert Jay Lifton; Nation Books, 200 págs., US$ 12,95

"Bush na Babilônia", de Tariq Ali; Record, 240 págs, R$ 27,90

"Depois do Império: A Decomposição do Sistema Americano", de Emmanuel Todd; Record, 237 págs, R$ 27,80

"Cara, Cadê Meu País?", de Michael Moore; Francis, 276 págs., R$ 34

"O Império Americano - Hegemonia ou Sobrevivência", de Noam Chomsky; Campus/Elsevier, 280 págs., R$ 49


Johnson realizou uma pesquisa extensa sobre os muitos redutos militares e de inteligência norte-americanos, dos quais a maioria dos cidadãos do país nunca ouviu falar. Ele tece um quadro assustador sobre um complexo militar-industrial que se transformou no tipo de força sigilosa e poderosa contra a qual Dwight D. Eisenhower alertou a população. E seu caráter perigoso foi intensificado pelo Executivo agressivo, criando um estado de guerra perpétua e de falência econômica. A avaliação que Johnson faz é de deixar qualquer um preocupado: "Não é evidente qual dos dois é uma ameaça maior à segurança e à integridade física dos cidadãos dos Estados Unidos: a possibilidade de um ataque terrorista com o uso de armas de destruição em massa, ou uma força militar descontrolada, decidida a descartar os ocupantes de cargos eleitos que se interpõem em seu caminho".

"The Bubble of American Supremacy" (A bolha da supremacia norte-americana, em tradução livre), de George Soros, o investidor bilionário que possui um programa de assistência ao exterior, é bem diferente, mais um longo ensaio que um estudo acadêmico.

Soros declara já de início que seu objetivo é fazer o que puder para impedir que Bush se reeleja. Escrevendo em estilo didático proposital, ele acusa a administração de ter "seqüestrado" o 11 de Setembro para o bem de sua própria "agenda política radical na área da política externa" e, depois, de ocultar seus objetivos reais por trás de uma fachada de liberdade e democracia. "Quando, como faz com freqüência, o presidente Bush diz que a 'liberdade' vai prevalecer, o que ele quer dizer, na realidade, é que os Estados Unidos vão prevalecer", escreve Soros, acrescentando: "Sou um tanto sensível ao discurso duplo orwelliano, porque cresci cercado disso na Hungria, primeiro sob o domínio nazista, depois sob o comunista".

O escritor paquistanês Tariq Ali, editor da revista "New Left Review", em Londres, soma à perspectiva muitas vezes convincente de um "insider" uma diatribe um tanto quanto superada sobre o "mal trino e uno" do "imperialismo norte-americano, sionismo e reação árabe". Ali descreve a ocupação norte-americana do Iraque como o mais recente exercício equivocado de uma fórmula colonizadora que "já destruiu boa parte da América Latina e toda a África": "Democracia capitalista, privatização e sociedade civil".

"Bush na Babilônia" é um pequeno livro curioso, feito em boa parte de poesia e recordações pessoais, com alguns insights valiosos sobre as sensibilidades que explicam por que a coalizão que ocupa o Iraque não está sendo tratada como salvadora. Conjeturando, por exemplo, sobre a razão pela qual os generais norte-americanos nada fizeram para proteger os tesouros culturais de Bagdá, Ali escreve: "Tendo incentivado seus soldados a combater e destruir os 'sujeitos de turbante', retratados em briefings como bárbaros incivilizados, responsáveis pelo 11 de Setembro, talvez eles agora temessem admitir que, afinal, os 'sujeitos de turbante' eram pessoas que tinham uma cultura".

O psiquiatra e escritor americano Robert Jay Lifton vê uma administração ideologicamente envolta numa dança de morte apocalíptica da qual não tem como sair, sendo que seu par na dança são os radicais islâmicos.

Estudioso do comportamento apocalíptico cujos livros anteriores trataram de Hiroshima, dos médicos nazistas e da seita japonesa Aum Shinrikyo, Lifton se alterna entre passagens bem fundamentadas sobre comportamentos extremos e uma aplicação muitas vezes pouco convincente dessas teorias à administração Bush. Em alguns momentos, seu livro "Superpower Syndrome" (Síndrome da Superpotência, em tradução livre) mergulha num discurso psico-histórico, como quando fala em "nuclearismo" —a adesão à bomba atômica "como fonte não apenas de poder transcendente mas também de paz e segurança que são garantias de vida, sendo que, em alguns casos, chega a ser vista quase como divindade".

Deixei para o fim a discussão de "Depois do Império", de Emmanuel Todd, não porque o considere menos importante do que os outros livros, mas porque representa o ponto de vista de um "outsider" —e é um ponto de vista bastante perturbador. Estou vivendo na França há nove meses. Freqüentemente, me pergunto se os norte-americanos têm consciência das dimensões do medo e da repulsa que muitos estrangeiros nutrem em relação aos Estados Unidos de George W. Bush. De acordo com o estudo de Todd, a condenação implacável de tudo o que é norte-americano tem sua origem num sentimento agudo de traição.

Historiador e antropólogo francês, formado na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e descendente de judeus que se refugiaram nos EUA, Todd diz que antigamente enxergava o país como um modelo a ser seguido, como sua "rede de segurança subconsciente". Hoje, diz ele, os Estados Unidos não passam de um "predador", um país que gasta muito mais do que produz, que conquista vitórias de videogame sobre nações indefesas e que desrespeita os direitos humanos. Ninguém escapa da fúria traída de Todd —nem a mulher norte-americana, "uma figura castradora e ameaçadora", nem os judeus norte-americanos, que "caíram num culto perturbador, para não dizer neurótico, ao Holocausto".

O consolo de Todd é também sua tese principal: a idéia de que o poderio norte-americano está se reduzindo rapidamente, devido ao modo perdulário como o país gasta: "Que os EUA gastem o que ainda resta de sua energia, se é isso que querem fazer, com a 'guerra ao terrorismo' —uma batalha que vem substituir a perpetuação de uma hegemonia que já perderam".

É fácil desprezar tudo isso como o falatório da velha Europa (surpresa: o livro de Todd é best-seller na França). Mas isso seria deixar de entender o mais importante: o fato de que seu sentimento de traição é compartilhado amplamente em todo o mundo, mesmo em lugares que a Casa Branca gosta de retratar como sendo seus amigos. Infelizmente, já ouvi tantas pessoas de boa vontade expressarem sua decepção profunda com os EUA que já não posso enxergar Todd como uma voz radical ou isolada.

Embora eu tenha vivido no exterior durante muitos anos e me veja como alguém já vacinado contra o antiamericanismo, confesso que fiquei espantado ao ver meu país sendo retratado, em página após página, livro após livro, como um império perigoso que vive seus últimos suspiros, um fracasso da democracia, um país militarista, violento, hegemônico, maligno, indiferente, arrogante, imperialista e cruel.

Daalder e Lindsay podem restringir-se por um sentimento norte-americano de respeito pela Casa Branca, mas também eles declaram que a política externa de Bush é errada. Não é apenas o "estilo imperioso", escrevem: "O problema mais profundo é que a premissa fundamental da revolução de Bush —que a segurança dos EUA depende de o país não sofrer restrições— é equivocada". A avaliação mais comovente vem de Soros, judeu nascido na Hungria que suportou na pele as ocupações alemã e soviética: "Não é esse o país que escolhi para ser meu lar".

Serge Schmemann, 67, é responsável pela página de editoriais do jornal "The International Herald Tribune".

Tradução de Clara Allain


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  • Duas vozes do esquerdismo
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