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25/05/2004 - 02h56

Leituras Cruzadas: Um dia como nenhum outro

Ricardo Bonalume Neto
da Folha de S.Paulo

Toda operação militar tem um começo, a hora H do dia D. Mas há um dia D que roubou o nome só para ele: a invasão da Normandia em 6 de junho de 1944. O Dia D, com maiúscula, faz 60 anos e ainda continua sendo tema de novos livros.

Reprodução
Uma das dez fotos de Robert Capa do desembarque na praia de Omaha, na Normandia, que sobreviveram a um erro de laboratório

Não há muito a ser descoberto sobre a operação Overlord. Mais de meio século de história foi suficiente para esquadrinhar cada aspecto da operação militar mais importante do século 20. Mas ela ainda serve de reflexão, e até mesmo ao saudosismo, em um momento em que os norte-americanos se vêem às voltas com uma guerra polêmica e impopular no Iraque.

No Dia D, as principais democracias ocidentais —EUA, Reino Unido e Canadá— se uniram para expulsar da França os ocupantes alemães. Libertar a Europa do nazismo era uma missão nobre, que corresponderia sem problemas ao conceito de uma "guerra justa".

Havia também outro espectro rondando o velho continente. A União Soviética se recuperara do violento golpe dado pelos alemães a partir de 1941. Em Stalingrado, em 1942/43, o avanço alemão fora bloqueado. Desde então, o rolo compressor do Exército Vermelho esmagava o que tinha pela frente. Se os aliados ocidentais não tivessem invadido a França, a famosa cortina de ferro não passaria pela Europa do leste, mas estaria no canal da Mancha.

Quem cunhou a expressão "cortina de ferro", aliás, foi o primeiro-ministro britânico Winston Churchill, certamente um dos maiores líderes políticos da história ocidental. Churchill relutava em invadir a França, de onde os britânicos tinham sido botinados em 1940. Ele preferia uma estratégia indireta, atacando o "ventre macio" do eixo Roma-Berlim —o sul da Europa.

Já os americanos, que entrariam com a parte do leão na invasão, queriam partir direto para cima do inimigo. Havia quem defendesse a operação já em 1943. Churchill protelava, esperando concentrar mais poder. Ele sabia que uma derrota no Dia D teria conseqüências gravíssimas. A democracia seria varrida do mapa europeu.

O mais novo livro sobre o dia foi lançado em abril justamente pelo biógrafo de Churchill, Martin Gilbert. Chama-se simplesmente "D-Day" (John Wiley & Sons, 240 págs., importado). Gilbert contou a história do estadista em seis livros e compilou outros 11 volumes de documentos. "Você imagina que, na hora em que você acordar de manhã, 20 mil homens podem ter sido mortos?", disse Churchill, na véspera do ataque, a sua mulher, cita o autor no livro.

O grande personagem do Dia D foi outro, contudo: o comandante supremo aliado, general Dwight Eisenhower. Não era considerado um militar brilhante, como o impulsivo líder de blindados George Patton. Mas a decisão de Eisenhower de prosseguir com o desembarque, baseado em um informe segundo o qual o tempo melhoraria, foi sem dúvida uma das mais corajosas de toda a história militar.

Eisenhower chegou a escrever uma famosa nota descrevendo o fracasso na operação e assumindo a culpa pelo desastre. Felizmente, não precisou lê-la. Na ordem do dia lida aos soldados, ele chama a libertação da Europa de uma "grande cruzada". Seu livro de memórias publicado no pós-guerra chamou-se "Crusade in Europe".

Alguns dos mais importantes historiadores militares também se debruçaram sobre o tema. É o caso de John Keegan, professor da academia militar britânica de Sandhurst e autor de "Six Armies in Normandy: From D-Day to the Liberation of Paris" (Penguin USA, 416 págs., importado), e Max Hastings, jornalista e correspondente de guerra, autor de "Overlord: D-Day and the Battle for Normandy" (Touchstone Books, 396 págs., importado). Hastings escrevia seu livro quando teve a chance única de participar de um desembarque anfíbio real. Ele foi o "primeiro homem" a entrar em Port Stanley, capital das Ilhas Falklands/Malvinas, depois da rendição argentina em junho de 1982.

Os livros desses dois são indispensáveis, pelo rigor da análise e pelo modo como tratam honestamente os diferentes atores. Depois da guerra, surgiu uma "guerra das memórias", nas quais os generais britânicos e norte-americanos se faziam críticas. Correntes de historiadores militares ainda debatem apaixonadamente detalhes da operação. Foram os britânicos tímidos em fechar o cerco aos alemães em Falaise? Tiveram os norte-americanos uma tarefa mais fácil, pois enfrentavam unidades alemãs menos aguerridas? E por aí vai.

O debate estratégico e as grandes decisões dos generais são apenas uma parte da história. Nos últimos anos, ganhou força a publicação de livros descrevendo o combate e o cotidiano do soldado comum. Um dos mais populares desses autores foi o norte-americano Stephen E. Ambrose, que tem vários livros publicados no Brasil, como é o caso do catatau "O Dia D - 6 de Junho de 1944 - A Batalha Culminante da Segunda Grande Guerra" (Bertrand Brasil, 756 págs., R$ 69). Outro livro dele narra a história de um seleto grupo de soldados: "Band of Brothers: Companhia de Heróis" (Bertrand Brasil, 400 págs., R$ 55). O título é tirado de uma frase famosa de Shakespeare, do discurso do rei inglês Henrique 5º para suas tropas antes da batalha de Agincourt, em 1415. Mais que patriotismo ou qualquer outra coisa, é a camaradagem entre os soldados que os faz combater.

"Band of Brothers" virou uma excelente minissérie de televisão. A série, de 2001, disponível em DVD (796 minutos, R$ 152,90), foi além do livro de Ambrose, acrescentando mais nomes e detalhes (além de um "making of" incluindo entrevistas com os veteranos).

O historiador, já morto, também assessorou um dos mais impactantes filmes sobre a invasão, "O Resgate do Soldado Ryan", de 1998 (169 minutos, R$ 52,90), de Steven Spielberg. As cenas iniciais do desembarque estão entre as mais realistas e chocantes em um filme de guerra.

Existem livros clássicos sobre a invasão. É o caso de "O Dia Mais Longo" (Difusão Européia do Livro, esgotado), de Cornelius Ryan, que também virou filme em 1962 (178 minutos, R$ 48,90). Apesar de antigo, sua mescla de descrições do que acontecia no comando e no combate permanece imbatível.

O cinema participou também "in loco". O diretor norte-americano John Ford presenciou parte das operações, embarcado em navios da Marinha dos EUA. Sam Fuller, outro diretor de renome, viu a guerra ainda mais de perto. Desembarcou no Dia D na praia de Omaha, a mais sangrenta para os aliados e a única onde se temeu uma derrota. Era soldado da 1ª Divisão de Infantaria dos EUA, cujo símbolo é um número "1" vermelho em fundo verde. "The Big Red One" (1980) —o apelido da divisão— é nome de um filme de Fuller (no Brasil, "Agonia e Glória", disponível em locadoras), com Lee Marvin no papel principal. O ator também era veterano de guerra: foi fuzileiro naval ferido no desembarque em Saipan, no Pacífico.

Curiosamente, as imagens mais conhecidas do Dia D são as fotos fora de foco e granuladas do célebre fotógrafo de guerra Robert Capa, feitas em Omaha. Capa, que na ocasião fotografava para a revista "Life", tirou 106 fotos. Mas o assistente de laboratório, em Londres, ansioso para vê-las, errou na secagem dos negativos, e só sobraram dez imagens.

Há centenas de livros escritos por outros participantes do fato histórico. Selecionar alguns é tarefa difícil. Mas, entre os memorialistas, dois tanquistas britânicos são particularmente bons: Norman Smith ("Tank Soldier", Book Guild, 203 págs., importado) e Ken Tout (autor de três volumes: "To Hell With Tanks", Ulverscroft, 448 págs.; "Tanks Advance!", HarperCollins, 272 págs.; e "Tank! 40 Hours of Battle", Robert Hale, todos importados). Eles narram em detalhe tanto a tediosa preparação para o combate como o pavor da batalha.

Livros mais antigos têm um problema comum. Não falam da capacidade aliada de ler as mensagens alemãs transmitidas pela máquina Enigma, algo que só nos anos 70 começou a ser revelado. Esse projeto, chamado Ultra, foi de grande importância em dados momentos da guerra.

A editora Renes publicou no Brasil dezenas de livros ilustrados da Ballantine Books sobre a Segunda Guerra, ainda encontráveis em sebos. Há uma boa biografia de Eisenhower feita por Martin Blumenson que vale a pena. A série inclui vários livros sobre o Dia D e a campanha da Normandia, além de alguns volumes bem especializados —um só sobre os jipes, por exemplo.

Editoras especializadas em temas militares lançaram milhares de livros sobre qualquer detalhe que se queira estudar do Dia D. A editora britânica Osprey Books, por exemplo, tem dezenas de livros que falam do tema.

"D-Day - From the Normandy Beaches to the Liberation of France", de Stephen Badsey (Tiger Books International), é um bom exemplo de livro de arte —ou "livro de mesa de centro". É ilustrado com fotos da época e com reproduções atuais de peças de uniforme e equipamento, de medalhas a latas de ração, de metralhadoras a capacetes ou fivelas de cinto.

Os franceses, naturalmente, também publicam pesadamente sobre o tema, já que o combate ocorreu ali e foi o prelúdio da libertação do país. A editora Heimdal tem um livro com minúcias sobre a "muralha do Atlântico", as obras defensivas alemãs. Em "Atlantikwall - Le Mur de l'Atlantique en France, 1940-1944" (480 págs., importado), você tem as respostas para todas as perguntas que poderia fazer sobre os modelos alemães de casamata...

As praias onde ocorreram o desembarque anfíbio —o maior da história, que envolveu 4.000 navios, 4.900 aviões de caça, 5.800 bombardeiros e 155 mil homens— ainda são conhecidas pelos nomes de código da época, como Omaha Beach e Utah Beach. Os locais estão preservados e se tornaram atração turística. Ali também estão cemitérios militares repletos de cruzes brancas. Os aliados tiveram cerca de 11 mil baixas, entre as quais 2.500 mortos. Bem menos do que Churchill temia, mas um preço alto mesmo assim.

Ricardo Bonalume Neto, 43, é repórter da Folha de S.Paulo especializado em assuntos militares e colaborador de revistas de história militar britânicas e americanas. Cobriu conflitos na Ásia e na África. É autor de "A Nossa Segunda Guerra - Os Brasileiros em Combate, 1942-1945" (Expressão e Cultura). Visitou as praias do Dia D em 1994, nas comemorações dos 50 anos do desembarque.

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  • Leia trecho de "Band of Brothers: Companhia de Heróis"

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