Folha Online sinapse  
25/05/2004 - 02h54

Leia trecho de "Band of Brothers: Companhia de Heróis"

da Folha de S.Paulo

Leia abaixo trecho do livro "Band of Brothers: Companhia de Heróis" (Bertrand Brasil, 400 págs., R$ 55), citado na seção "Leituras Cruzadas" do Sinapse de 25 de maio de 2004.

Capítulo 1: "Queríamos Aquelas Asas"

CENTRO DE INSTRUÇÃO
MILITAR DE TOCCOA1
Julho-dezembro de 1942

Oriundos de várias partes dos Estados Unidos, os membros da Companhia E, 506º. Regimento de Infantaria Pára-quedista (RIP), 101ª Divisão Aerotransportada do Exército Americano (DIA), caracterizavam-se por um passado de diferenças extremas. Uns haviam sido fazendeiros e mineradores, habitantes das montanhas e filhos do chamado Deep South.2 Alguns eram extremamente pobres, outros provenientes da classe média. Um deles vinha de Harvard, outros de Yale, alguns da UCLA.3 Apenas um servira no Old Army,4 somente uns poucos vinham da Guarda Nacional ou da reserva. Eles eram soldados cidadãos.

Eles foram reunidos no verão de 1942, época em que os europeus estavam em guerra havia três anos. No fim da primavera de 1944, haviam se tornado membros de elite de uma companhia de infantaria aerotransportada leve. Nas primeiras horas da manhã do Dia D,5 em seu primeiro combate, a Companhia E capturou e tirou de ação uma bateria alemã de canhões de 105 milímetros que defendia um trecho da Praia de Utah.6 A companhia encabeçou o avanço para Carentan, combateu na Holanda, controlou as cercanias de Bastogne, liderou a contra-ofensiva na Batalha das Ardenas, participou da campanha da Renânia e tomou o Ninho da Águia, a fortaleza de Hitler em Berchtesgaden. Ela sofreu quase 150% de baixas. No auge de suas atividades, na Holanda em outubro de 1944 e nas Ardenas em janeiro de 1945, foi uma das melhores companhias de fuzileiros do mundo.

Depois, com o dever cumprido, a companhia foi desfeita, e seus membros voltaram para casa.



Cada um dos 140 combatentes e 7 oficiais que formavam a companhia original trilhou caminhos diferentes na volta para o local em que ela nascera, Centro de Instrução Militar de Toccoa, na Geórgia, mas eles tinham algumas coisas em comum. Eram jovens, nascidos nos anos da 1ª Guerra Mundial e nos que os sucederam. E eram brancos, pois o exército americano, na 2ª Guerra Mundial, tinha uma política de segregação racial. Com três exceções, todos eram solteiros. Quando estudantes, tinham sido caçadores e atletas, em sua maioria.

Eles eram especiais em seus valores. Valorizavam muito o bem-estar físico, a hierarquia e o fato de fazerem parte de uma unidade de elite. Eram idealistas, prontos e ávidos por incorporar-se a um grupo em luta por uma causa e procuravam ativamente uma unidade com a qual pudessem identificar-se, juntar-se a ela e cooperar com seus membros como se numa família.


Ofereceram-se como voluntários para compor o corpo de pára-quedistas, disseram, por causa da emoção e da honra que isso proporcionava e pelos 50 dólares mensais (para os alistados) ou 100 dólares (para os oficiais) como adicional que os pára-quedistas recebiam. Mas, em verdade, eles se ofereceram para saltar de aviões por duas razões sérias e pessoais. Primeiro, nas palavras de Robert Rader, "o desejo de ser melhor que o colega foi um ponto decisivo". Cada um deles, a seu modo, havia tido a mesma experiência de Richard Winters: a de acabar percebendo que, em sua passagem pelo exército, o melhor era dar o máximo de si, em vez de justificar a ociosidade com desculpas lamentáveis, tal como o faziam os soldados que conheceram nos postos de recrutamento ou nos centros de instrução básica. Eles queriam aproveitar bem o tempo gasto no exército, fazer dele uma experiência de aprendizado, amadurecimento e emoção.

Segundo, eles sabiam que entrariam em combate e não queriam fazer isso com recrutas maltreinados, fora de forma e pouco motivados ao lado deles. Entre a opção de ser um pára-quedista encabeçando uma ofensiva e a de ser um simples soldado de infantaria que não pudesse confiar no sujeito ao lado, chegaram à conclusão de que o risco maior estava na de fazer parte da infantaria. Quando o tiroteio começasse, queriam alçar os olhos para o colega ao lado, em vez de olhar para baixo.

Eles haviam sido castigados pela Depressão de 29 e tinham cicatrizes para exibir como conseqüência disso. Tinham crescido, muitos deles, sem o suficiente para comer, com sapatos furados, com suéteres esfarrapadas e sem o conforto do carro e do rádio. O estudo tinha sido interrompido, quando não pela Depressão, pela guerra.

— Apesar disso, de um passado como esse, eu amava muito, e ainda amo, o meu país — declarou Harry Welsh 48 anos depois. Independentemente de quanto tenham podido queixar-se legitimamente da forma pela qual a vida os havia tratado, não se amarguraram com isso nem com o seu país.

Saíram da Depressão com muitas outras qualidades positivas. Eram independentes, acostumados a trabalho árduo e a obedecer a ordens. Quer por meio da prática de esportes, quer da caça, quer de ambos, tinham adquirido a consciência do próprio valor e confiança em si mesmos.

Sabiam que estavam indo de encontro a grande perigo. Sabiam que fariam mais do que o próprio papel, individualmente considerado. Ressentiam-se do fato de ter de sacrificar anos de sua juventude em favor de uma guerra que não provocaram. Queriam arremessar bolas de beisebol, e não granadas, disparar espingardas, e não fuzis M-1. Mas, já que tinham sido surpreendidos pela necessidade de lutar, resolveram ser tão corretos quanto possível em sua carreira no exército.

Não que soubessem muito sobre unidades aerotransportadas, exceto que era algo novo e que tornar-se um de seus membros dependia apenas de uma decisão totalmente voluntária. Haviam dito a eles que o treinamento físico era mais rigoroso que tudo que tinham visto até então, ou ao que todas as outras unidades do exército seriam submetidas, mas esses jovens leões estavam ansiosos por isso. Tinham como certo que, quando terminassem o treinamento, seriam mais corpulentos, mais fortes e mais resistentes do que antes, quando tudo começou, e que passariam pelo treinamento com os colegas que lutariam ao lado deles.

— A Depressão passou — diz Carwood Lipton, lembrando-se do verão de 1942 —, e eu estava começando uma vida nova, que me faria mudar profundamente. — Todos eles mudariam.



O primeiro-tenente Herbert Sobel, de Chicago, foi um dos primeiros membros da Easy Company (Companhia E), e seu comandante. Seu subcomandante era o segundo-tenente Clarence Hester, do Norte da Califórnia. Sobel era judeu, sujeito refinado, ex-oficial da Guarda Nacional. Hester tinha começado como soldado e depois se tornou oficial pela Escola de Aspirantes-a-Oficial (EAO). A maioria dos líderes e assistentes de líderes de pelotão eram alunos recém-graduados pela EAO, e tal foi o caso dos segundos-tenentes Dick Winters, da Pensilvânia, Walter Moore, das pistas de corrida da Califórnia, e Lewis Nixon, da Cidade de Nova York e de Yale. S. L. Matheson formou-se pelo Corpo de Instrução dos Oficias da Reserva7 na UCLA. Aos 28 anos de idade, Sobel era o "coroa" do grupo; os outros tinham 24 anos ou menos.

A companhia, juntamente com as Companhias Dog, Fox e a Companhia do QG do 2º Batalhão, formavam o 2º Batalhão do 506º RIP. O comandante do batalhão era o major Robert Strayer, oficial da reserva de 30 anos de idade. O comandante do regimento era o coronel Robert Sink, formado pela West Point em 1927. O 506º era uma unidade experimental, o primeiro regimento de infantaria pára-quedista cujos membros fariam seu treinamento básico e de salto juntos, como unidade. Um ano depois, ela seria incorporada à 101ª Divisão de Infantaria Aerotransportada (DIA), unidade conhecida como Screaming Eagles. Os oficiais eram tão novatos nessa coisa de pára-quedismo quanto os soldados; eram professores que, em alguns casos, não estavam mais que um dia à frente da turma no conhecimento do assunto.

Os primeiros graduados da unidade tinham passado pelo Velho Exército. — Nós os víamos — comenta o praça Walter Gordon, de Mississípi — quase como deuses, já que tinham experiência, eram pára-quedistas qualificados. Pois, ora, se sabiam fazer meia-volta, estavam mais adiantados que nós; nós éramos recrutas. Depois, quando considerávamos o passado, passávamos a vê-los com desprezo. Não podiam comparar-se com o nosso pessoal que chegava a cabo e a sargento.

Os primeiros praças da Easy foram Frank Perconte, Herman Hansen, Wayne Sisk e Carwood Lipton. Poucos dias depois de sua formação, a Easy estava completa, com 132 combatentes e 8 oficiais. Ela foi dividida em três pelotões e um quartel-general. Havia três esquadrões de fuzileiros, com 12 homens cada um, mais um esquadrão de morteiro, com seis homens em cada pelotão. Unidade de infantaria leve, a Easy tinha uma metralhadora e um morteiro de 60 milímetros em cada um dos esquadrões de fuzileiros.

Poucos dos membros originais da Easy conseguiram passar por Toccoa. — Os oficiais chegavam e partiam — observa Winters. — Bastava olhar para eles para ver que não conseguiriam sair-se bem. Alguns desses caras eram apenas sacos de banha. Eram tão desajeitados que não sabiam nem cair. — Isso foi típico dos homens que se submeteram a testes para uma vaga no 506º RIP; foram necessários 500 oficiais voluntários para obter 148 capazes de passar por treinamentos em Toccoa, e 5.300 alistados voluntariamente para obter 1.800 oficiais.



Tal como mostram os números, Toccoa era um desafio. A tarefa do coronel Sink era fazer esses homens passar por um treinamento básico, torná-los resistentes e robustos, ensinar-lhes os rudimentos de táticas de infantaria, prepará-los para a escola de pára-quedismo e montar um regimento que ele comandaria nos combates. — Fizemos a triagem desses homens — lembra-se o tenente Hester — e eliminamos os gordos e medrosos e ficamos com os magros.

O praça Ed Tipper nos fala de seu primeiro dia na Easy.

— Levantei o olhar em direção ao Monte Currahee e disse a alguém: "Aposto que, quando terminarmos o programa de treinamento aqui, a última coisa que nos farão fazer será escalar aquela montanha até o topo." [Currahee era mais morro do que montanha, mas erguia-se a uns 300 metros do solo e dominava a paisagem.] Alguns minutos depois, alguém tocou um apito. Entramos em forma, recebemos ordens para trocar as botas e pôr calções de atleta. Fizemos isso e entramos em forma de novo — e depois cobrimos os pouco mais de 5 mil metros até o topo correndo e voltamos do mesmo jeito. — Eles perderam alguns homens nesse primeiro dia. Uma semana depois, estavam fazendo, em ritmo de corrida — ou, pelo menos, em marcha acelerada —, o caminho inteiro até o topo e voltando.

No fim da segunda semana, prossegue Tipper:

— Disseram-nos: "Relaxem. Nada de corrida hoje." Fomos levados ao refeitório na hora do almoço para comer um baita prato de espaguete. Quando saímos do refeitório, ouvimos o apito tocar, e nos disseram: "Mudança de ordens. Vamos correr." Fomos até o topo do Currahee e voltamos, com algumas ambulâncias nos acompanhando e homens vomitando espaguete pelo caminho inteiro. Os que desistiram e aceitaram o convite dos socorristas para voltar de ambulância foram dispensados e despachados no mesmo dia.

Disseram à tropa que Currahee era uma palavra indígena que significava "Resistimos sem ajuda", modo pelo qual se esperava que os pára-quedistas combatessem. A expressão tornou-se o grito de guerra do 506º.

Os oficiais e os soldados subiam e desciam o Currahee correndo três ou quatro vezes por semana. Faziam isso para que pudessem tornar-se capazes de cobrir o percurso de ida e volta, pouco mais de 10 mil metros, em 50 minutos. Além disso, passavam por uma cansativa série de superação de obstáculos diariamente e faziam flexões de braço e pernas, suspensão em barras e outros exercícios físicos.

Quando não estavam exercitando-se, a tropa aprendia os rudimentos da vida de soldado. Começava por exercícios militares, formação compacta, e depois fazia marcha noturna carregando equipamento de campanha completo. A primeira noite de marcha era de 18 quilômetros; a cada nova marcha, acrescentavam-se dois ou três quilômetros. Eram feitas sem pausa para descanso, cigarro ou água. — Ficávamos em péssimo estado, exautos, e tínhamos a impressão de que, se não conseguíssemos tomar um gole d'água, cairíamos com certeza — relata o praça "Pat" Christenson. No fim da marcha, Sobel examinava o cantil de cada um dos homens para ver se ainda estava cheio.

Os que conseguiam resistir chegavam lá por causa de uma força de vontade férrea e do desejo de reconhecimento público, para que vissem que eram especiais. Como todas as unidades de elite do mundo, a unidade de pára-quedistas tinha suas insígnias e seus símbolos. Assim que esses homens passavam pela escola de pára-quedismo, recebiam distintivos em forma de asas de prata para usar no bolso esquerdo da jaqueta, uma insígnia para o ombro esquerdo e uma para a boina e o direito de usar botas de pára-quedista com as calças enfiadas nelas. Gordon disse que "isso não faz muito sentido agora [1990], mas, na época, estávamos dispostos a negociar a própria vida para usar esses objetos da Aerotransportada".

O único descanso que tinham era quando assistiam a preleções sobre armas, mapas e leitura de bússola, táticas de infantaria, códigos, sinalização, telefonia de campanha, equipamentos de rádio, mesas telefônicas e instalação elétrica, demolições. Nas simulações de combate sem armas e à baioneta, voltavam a pôr os músculos trêmulos para trabalhar.

Quando lhes deram o fuzil, disseram a eles que cuidassem da arma como se estivessem tratando a própria esposa, com gentileza. Era deles e com eles deveria ficar, para dormir com ele no campo e conhecê-lo intimamente. Eles chegavam ao ponto de conseguir desmontá-lo e tornar a montá-lo de olhos vendados.

Para preparar a tropa para a escola de pára-quedismo, Toccoa tinha uma torre de cerca de 10 metros de altura. O sujeito era preso ao arnês de um pára-quedas fixado a ascensores de 5 metros de altura, que, por sua vez, eram presos a uma roldana, por cuja canelura passava um cabo. O ato de saltar da torre preso ao arnês e deslizar pelo cabo em direção ao solo dava a sensação de um salto de pára-quedas e de uma aterrissagem reais.

Todas essas atividades eram acompanhadas por aclamações uníssonas e coros, cantorias ou reprovações. A linguagem era chula. Esses alistados, com 19 ou 20 anos de idade, livres das limitações do lar e das convenções sociais, reunidos numa comunidade só de homens, oriundos de todas as partes dos Estados Unidos, usavam palavras como forma de pertinência grupal. A mais comumente usada era, de longe, a que começava por "f".8 Ela substituía verbos e adjetivos. Era usada, por exemplo, para se queixarem dos cozinheiros: "esses fu--dos", ou "cozinheiros fu--dos"; ou do que eles faziam: "fu--ram tudo outra vez". David Kenyon Webster, estudante de língua inglesa em Harvard, admitiu que achava difícil adaptar-se à "linguagem vil, monótona e sem imaginação" do centro. A linguagem fazia esses garotos que estavam transformando-se em homens sentirem-se durões e, sobretudo, membros de um grupo. Até mesmo Webster acostumou-se com esse linguajar, embora jamais tivesse gostado dele.

Esses homens estavam aprendendo mais do que apenas xingar, mais do que disparar fuzis, mais do que o fato de que os limites de sua resistência física eram muito maiores do que tinham imaginado. Estavam aprendendo a obedecer instantaneamente, sem contestação. Pequenas infrações eram punidas no local mesmo em que eram praticadas, geralmente exigindo-se do infrator que fizesse exercícios de flexão. Infrações mais sérias custavam ao jovem sua licença de fim de semana ou várias horas de marcha com todo o equipamento de campanha na praça de armas. O exército tinha uma máxima, conta-nos Gordon: — Não podemos obrigá-lo a fazer nada, mas podemos fazê-lo arrepender-se de não o ter feito. — Reunidos pela própria indigência, mantidos junto pela marcação das cadências, cantando, e por suas experiências em comum, estavam tornando-se uma família.

A companhia aprendeu a agir como unidade. Poucos dias depois de sua formação, seus 140 membros conseguiam realizar movimentos de direção e conversão, ou de meia-volta, como se fossem um só corpo. Ou iniciar movimento em marcha acelerada, ou de corrida. Ou ainda pôr-se ao chão para fazer flexões. Ou dizer em voz alta: — Sim, senhor! — Ou:

— Não, senhor — unissonamente.

Tudo isso era parte dos ritos de iniciação comuns a todos os exércitos. E também aprender a beber. Cerveja, quase que exclusivamente, na cooperativa militar, já que não havia nenhuma cidade nas proximidades. E muita cerveja. Entoavam canções de soldados e, invariavelmente, lá pelas últimas horas da noite, um deles insultava o outro com uma alusão à mãe, à namorada, à terra natal ou à região dele. Depois, brigavam, tal como jovens soldados costumam fazer, ensangüentando narizes ou enegrecendo olhos, antes de seguir cambaleantes para os alojamentos, bradando palavras de guerra, sustentando uns aos outros, criando laços de camaradagem.

O resultado desse compartilhamento de experiências era uma união desconhecida pelos de fora. Camaradas são mais que amigos, mais que irmãos. Sua amizade é diferente da que une amantes. Eles se conheciam e confiavam uns nos outros plenamente. Chegavam a conhecer as histórias de suas vidas, o que faziam antes de entrar para o exército, onde e quando se apresentaram como voluntários, o que gostavam de comer e beber e quais eram suas aptidões. Nas marchas noturnas, ouviam alguém tossir e sabiam quem era; nas manobras noturnas, viam alguém se movendo sorrateiramente através da floresta e, pela silhueta, sabiam quem era.

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