Folha Online sinapse  
28/09/2004 - 03h00

Leia introdução de "O Golem"

da Folha de S.Paulo

Confira abaixo a introdução de "O Golem" (Editora Unesp, 256 págs., R$ 38), de Harry Collins e Trevor Pinch, livro citado na seção "Leituras Cruzadas" do Sinapse de 28 de setembro de 2004.

Introdução

A ciência parece ser totalmente boa ou totalmente má. Para alguns, ciência é um cavaleiro das cruzadas cercado de místicos simplórios, enquanto figuras mais sinistras aguardam para fundar um novo fascismo nascido do triunfo da ignorância. Para outros, o inimigo é a ciência; nosso planeta gentil, nosso sentimento de justiça, nossa sensibilidade poética e estética são agredidos por uma burocracia tecnológica — a antítese da cultura — controlada por capitalistas cujo único interesse é o lucro. Para alguns, a ciência nos proporciona autonomia agrícola, a cura dos deficientes, uma rede de comunicação global; para outros, ela fornece as armas da guerra, a morte ardente de um professor enquanto o ônibus espacial cai das nuvens, o silencioso e dissimulado veneno dos ossos: Tchernobil.

Essas duas visões da ciência são erradas e perigosas. A personalidade da ciência não corresponde nem ao cavaleiro das cruzadas nem a um impiedoso deus hindu. Então, o que é ciência? Ela é um golem.

Golem é uma criatura da mitologia judaica. É um humanóide feito de barro e água por meio de encantamentos e feitiçaria. Ele é poderoso e vai se tornando mais poderoso com o passar dos dias. Obedece ordens, faz o seu trabalho e protege você da constante ameaça do inimigo, mas é desajeitado e perigoso; sem controle, pode destruir os amos com sua agitada vitalidade.

A idéia do golem assume diferentes conotações em diferentes lendas. Em algumas ele é aterradoramente maléfico, mas existe uma tradição mais rústica: no iídiche proveniente dos guetos do leste europeu, um golem (pronuncia-se "goilem"nesse dialeto) é uma metáfora de qualquer bobo pesadão quedesconhece tanto sua força como o grau da sua falta de jeito e ignorância. Para a avó de Collins, era bom conhecer um golem se você quisesse ter o jardim podado, mas as crianças eram aconselhadas a manter distância. Esse golem não é um demônio perverso, mas um gigante desajeitado.

Já que estamos nos valendo do golem como metáfora da ciência, é bom mencionar que, na tradição medieval, essa criatura de barro passava a ter vida quando a palavra hebraica emeth, que significa "verdade", era inscrita em sua testa — é a verdade que o impulsiona. Entretanto isso não significa que ele compreenda a verdade — longe disso.

A idéia aqui é explicar o golem que é a ciência. Nossa intenção é mostrar que ele não é uma criatura diabólica, mas sim um tanto boba. A ciência do golem não pode ser responsabilizada pelos seus erros; os erros são nossos. Um golem não pode ser culpado se está dando o melhor de si. Mas não devemos esperar demais. O golem, mesmo poderoso, é uma criatura da nossa arte e habilidade.

O livro é bem direto. Para mostrar o que é a ciência do golem fazemos algo quase inusitado: apresentamos a ciência recaindo o mínimo possível no método científico. Simplesmente descrevemos episódios da ciência, alguns bem conhecidos, outros nem tanto. Contamos o que aconteceu. Quando lançamos críticas, como no caso da história da fusão fria, são sobre questões humanas e não metodológicas. O resultado é surpreendente. O choque se deve ao fato de a idéia de ciência estar tão intrincadamente presente em análises filosóficas, mitos, teorias, hagiografia, complacência, heroísmo, superstição, medo e, particularmente, na visão retrospectiva perfeita que o que realmente acontece nunca foi dito fora de um pequeno círculo.

Prepare-se para duas coisas: aprender um pouco de ciência — da ciência da relatividade, do centro do Sol, das forças cósmicas, dos cérebros de vermes e ratos, da invenção dos germes, da fusão fria e da vida sexual dos lagartos —, mas também muito a respeito da ciência — aprender a amar o gigante desajeitado pelo que ele é.

No final, apresentamos o que pensamos que você deveria ter aprendido e quais são as implicações quando a ciência do golem é acionada. A parte principal do livro corresponde aos capítulos de 1 a 7, em que os casos selecionados são descritos. Os capítulos são auto-suficientes e podem ser lidos em qualquer ordem. As conclusões também podem ser lidas de maneira independente, se bem que não serão convincentes fora do contexto dos exemplos discutidos. Não sabemos qual a melhor maneira de começar, se pelo caso, pela discussão ou algo intermediário; os próprios leitores terão de decidir.

Não nos aprofundamos em uma análise explícita do processo da ciência. Contudo, existem temas comuns que emergem em cada capítulo, sendo que o mais importante é a noção da regressão do cientista experimental, detalhada no capítulo 5, dedicado à radiação gravitacional. O problema com experimentos é que eles não nos mostram nada a não ser que sejam conduzidos de maneira competente; mas na ciência controversa ninguém consegue concordar sobre o critério de competência. Assim, nas controvérsias, invariavelmente, os cientistas não apenas discordam a respeito dos resultados mas também sobre a qualidade do trabalho dos outros. É o que impede que os experimentos sejam decisivos, dando lugar à regressão. Caso os leitores queiram se aprofundar nessa questão, recorram aos livros de Collins e Pinch mencionados no Prefácio e agradecimentos. A questão é que, para os cidadãos que querem participar do processo democrático em uma sociedade tecnológica, toda a ciência que precisam conhecer é controversa e, portanto, está sujeita à regressão do cientista experimental.

Talvez nossas conclusões sejam por demais desagradáveis para alguns e, nesse caso, esperamos que as descrições sejam interessantes e informativas por si mesmas. Cada evento selecionado descreve um trabalho científico estupendo, entretanto a beleza não é o brilho criado pelo disco de polir do filósofo, é o resplendor do diamante bruto.

Leia mais
  • Leituras Cruzadas: Uso e abuso da ciência
  • Leia prefácio de "Libertação Animal"

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