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28/09/2004 - 03h04

Leituras Cruzadas: Uso e abuso da ciência

Reinaldo José Lopes
free-lance para a Folha de S.Paulo

Tente se lembrar daquelas longínquas aulas de ciências que você teve na sétima série. Há uma chance considerável de que, entre o pouco conteúdo retido daquelas conversas, esteja uma simpática história sobre o cientista francês Louis Pasteur (1822-1895) e sua cruzada contra a teoria da geração espontânea, muito defendida por vários pesquisadores do século 19. Os proponentes da geração espontânea acreditavam que certos meios físicos —o ar, a água ou até um simples caldo de carne frio— eram dotados de uma "qualidade vital" que permitia o aparecimento de seres vivos. Mesmo em condições completamente isoladas, a vida tenderia a emergir sozinha desses meios.

Peter Macdiarmid - 19.mai.2004/Reuters
Ampolas usadas para a armazenagem de células-tronco no UK Stem Cell Bank, na Inglaterra

Pasteur, um dos primeiros cientistas a demonstrar que microrganismos denominados bactérias causavam doenças, se pôs a argumentar que a geração espontânea era um equívoco. Seres vivos só podiam ser gerados por outros seres vivos, e o que acontecia é que o meio tinha sido contaminado com microrganismos antes de ser isolado, e por isso eles pareciam ser "gerados" pelo meio. Com suas técnicas de esterilização, Pasteur provou que um meio realmente limpo de microrganismos não era mais capaz de "gerá-los" e, assim, desbancou a geração espontânea. Caso encerrado, um a zero para a ciência moderna.

Com uma ou outra variante, essa deve ter sido a história que você ouviu de seu professor de ciências, mas ela é apenas parte da verdade. Para começo de conversa, Pasteur não tinha como saber, mas há diversos micróbios que sobrevivem à fervura a 100 oC, que ele utilizava. E ele chegou a ignorar o resultado de experimentos no começo da carreira porque eles pareciam corroborar a tese da geração espontânea —não é exatamente a humildade que se costuma esperar de um cientista.

Essa versão mais complexa da controvérsia pasteuriana, contada no livro "O Golem" (Editora Unesp, 256 págs., R$ 38), é só uma primeira amostra de como os cientistas, ao contrário do que se acredita, estão longe de respirar uma atmosfera de objetividade a temperatura e pressão constantes. O livro, ao lado de um conjunto de outras obras recentes, ajuda a reajustar o foco sobre as circunstâncias em que a ciência é feita (e, muitas vezes, refeita). Como qualquer outro empreendimento humano, a pesquisa científica está presa à sua própria rede de interesses mesquinhos, cobiça financeira e, às vezes, pura vaidade e teimosia. É fato que a ciência conta com mecanismos bastante eficientes de autocorreção, mas isso não significa que seu lado menos nobre não aflore de vez em quando.

Harry Collins e Trevor Pinch, os autores de "O Golem", usam como metáfora dessa situação o golem, uma estátua de barro do folclore judaico que ganha vida se alguém escrever na sua testa a palavra "emeth" (verdade, em hebraico). O golem é um gigante poderoso, mas não tem mente própria —precisa ser guiado e controlado por seu proprietário, se ele quiser evitar que o monstro esmague tudo pelo caminho.

Assim é a ciência, diz a dupla: um gigante potencialmente útil, mas "burro", que não vive sem interpretação humana, justamente a parte mais falível do processo. Os fatos não falam por si mesmos, e é por isso que Pasteur, pelos padrões de hoje, não "provou" coisa nenhuma nos anos 1860. Os saborosos exemplos do livro, no entanto, abrangem uma infinidade de outras áreas. Por exemplo: em observações de um eclipse que teriam "provado" a teoria da relatividade, o britânico Arthur Eddington desprezou os dados que não confirmavam suas previsões.

Collins e Pinch concentram seu relato nos dilemas da ciência séria, cujos praticantes publicam seus trabalhos em revistas especializadas de renome e enfrentam o supostamente rigoroso crivo do "peer review" (a revisa por pares, na qual, anonimamente, especialistas reconhecidos avaliam se um trabalho merece ou não ser publicado).

Já o jornalista científico francês Michel de Pracontal, em "A Impostura Científica em Dez Lições" (Editora Unesp, 453 págs., R$ 49), é mais democrático: sobram bordoadas também para místicos, gurus, defensores de "energias" e "terapias alternativas", embora as trapalhadas da ciência oficial também sejam castigadas ao lado do que ela própria costuma classificar de pseudociência.

Aliás, as dez lições estão longe de ser meras metáforas: Pracontal estruturou a obra desse jeito, com nomes de capítulo que parecem mandamentos bíblicos e, no final de cada seção, exercícios para os impostores que estão começando. É claro que esse didatismo todo não passa de instrumento para mostrar como é fácil praticar a impostura científica em comparação com o rigor da ciência em seus melhores momentos.

Muito dessa comédia de erros, assinala Pracontal, deriva da mania de colar o adjetivo "científico" (que acaba sendo igualado a "verdadeiro" na cabeça de boa parte do público) em temas que são essencialmente impossíveis de investigar com o método da ciência. O caso mais emblemático são perguntas como "quem somos?" e "de onde viemos?", caras aos impostores e evitadas pela imensa maioria dos cientistas.

Apesar da boa vontade de membros das comunidades científica e religiosa, o fato é que os abismos entre fé e ciência ainda são uma das questões mais complexas a afligir ambos os lados. O diálogo é necessário e até possível, mas o caminho seguido pelo físico britânico Colin Humphreys em "Os Milagres do Êxodo" (Imago, 360 págs., R$ 54) é um tanto afoito. Respeitado pesquisador da Universidade de Cambridge (Reino Unido), ele usa uma abordagem multidisciplinar —com conceitos de geologia, arqueologia e biologia— para tentar explicar cientificamente os prodígios que teriam acompanhado a fuga dos israelitas do Egito, liderados pelo profeta Moisés, conforme contado no livro bíblico do Êxodo.

O físico não deixa de fazer um exercício instigante de imaginação ao procurar causas naturais para fenômenos aparentemente sobrenaturais, como o momento em que o rio Jordão seca para dar passagem aos israelitas (possível resultado de um terremoto que deteve a vazão do curso d'água) ou a última das famosas dez pragas do Egito, a morte dos primogênitos (supostamente causada pela contaminação dos cereais por um fungo letal). As explicações são engenhosas e até coerentes, mas Humphreys parte do princípio de que, se uma obra literária antiga afirma representar a verdade histórica, então deve ser levado a sério, até prova em contrário. Para um texto cuja versão final só foi redigida com objetivos teológicos óbvios, quase mil anos depois dos eventos que descreve, essa posição é inevitavelmente temerária.

O leitor interessado em caminhos para um relacionamento produtivo entre ciência e religião deve tirar mais proveito de "Pilares do Tempo" (Rocco, 185 págs., R$ 28,50), do paleontólogo norte-americano Stephen Jay Gould, morto em 2002. Nele, o pesquisador defende que os dois campos deveriam ser considerados "magistérios não-interferentes" (ou MNI). Ciência e religião precisam uma da outra, argumenta ele: ambas são pilares de impulsos humanos fundamentais, o de entender os fatos do Universo e o de estabelecer propósitos, finalidades, certos e errados, respectivamente. Os dois lados têm de controlar sua tendência a invadir o domínio do vizinho, mas só podem se enriquecer com o diálogo e a compreensão mútua.

O raciocínio do paleontólogo dificilmente é lido sem a constatação de que, muitas vezes, a ciência não deu a mínima para o preceito dos MNI, tal como a religião. Não é tanto que os cientistas tenham se arrogado o direito de dizer o que é certo e o que é errado (embora isso também tenha acontecido no século que passou), mas principalmente que tenham ignorado as conseqüências éticas do que saía dos laboratórios.

Os resultados desse pecado da omissão são explorados de forma perspicaz em "Bioética Cotidiana" (Editora UnB, 280 págs., R$ 34), do médico italiano Giovanni Berlinguer, e "Libertação Animal" (Lugano, 392 págs., R$ 45), do filósofo australiano Peter Singer.

Berlinguer até aborda os pesadelos bioéticos que andam na moda, como a clonagem reprodutiva, mas seu enfoque principal é mostrar como revoluções científicas relativamente simples, como a fertilização in vitro, podem criar problemas sociais que beiram o insolúvel. Não foi preciso mais que uma inseminação artificial, por exemplo, para gerar o pesadelo de um bebê órfão de cinco pais: o casal que queria tê-la, mas era estéril, o pai e mãe biológicos anônimos que doaram óvulos e espermatozóides e a mulher que foi "barriga de aluguel". Bastou o primeiro casal se separar para não haver ninguém disposto a cuidar do bebê.

Já Singer, defensor irrestrito dos direitos dos animais, mostra como estudos de valor científico muito baixo ou quase inexistente causaram e ainda causam sofrimento desnecessário a seres vivos em todo o mundo. O desenvolvimento tecnológico também permitiu o surgimento da pecuária industrial de hoje, que transforma animais em meras máquinas de produzir carne, leite e ovos. O lado positivo dessa tragédia é que a mesma ciência também é capaz de demonstrar, sem sombra de dúvida, o quanto esses animais sofrem —é o golem de novo em ação. Como diz o biólogo conservacionista americano Edward Wilson, "científico" não é sinônimo de "certo", nem deve ser considerado assim: "Ciência e a tecnologia são o que nós somos capazes de fazer; moralidade é o que nós concordamos que deveríamos ou não fazer".

Leia mais
  • Leia prefácio de "Libertação Animal"
  • Leia introdução de "O Golem"

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