Folha Online sinapse  
26/10/2004 - 03h00

Mata-mata corporativo

Vinícius Queiroz Galvão
free-lance para a Folha de S.Paulo

A francesa Ghislaine Dubrule, 53, radicada em São Paulo há 29 anos, divide o comando da rede de lojas de móveis e design Tok&Stok com o marido. Apesar da posição, define sua trajetória profissional como uma série de obstáculos que tiveram de ser vencidos por uma só razão: ser mulher. "As coisas são mais difíceis. Eu sempre tive de mostrar que sou capaz e competente", afirma.

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Ghislaine Dubrule, vice-presidente da Tok&Stok

Cada vez mais populares em filmes ou programas de televisão, histórias de mulheres que chegaram ao topo no mundo dos negócios ainda são raras na vida real. É o que comprova a primeira edição da pesquisa "Mulheres na Empresa", da Fundação Dom Cabral, de Belo Horizonte. O levantamento sobre o ambiente corporativo nas 500 maiores empresas do país (selecionadas no ranking da revista "Exame") mostrou a dimensão da prevalência de gênero no comando dos negócios no Brasil: apenas 2% da lista têm mulheres em posto de presidência. Segundo outra pesquisa, "Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas", realizada pelo Instituo Ethos em 2003 e divulgada no mês passado, não basta a mulher estar mais presente no mercado de trabalho para que sua situação esteja melhor: apenas 9% ocupam cargos de direção -elas são 18% entre gerentes e 28% entre supervisores.

De acordo com Betânia Tanure, pesquisadora da Fundação Dom Cabral, o modelo de exercício de poder no Brasil ainda é masculino. Ela afirma que as mulheres entram no mercado de trabalho de maneira cada vez mais significativa em funções gerenciais, mas sentem uma espécie de teto de vidro que separa a facilidade do ingresso no mercado da dificuldade de ascensão na carreira. "Todas as empresas têm um discurso politicamente correto, afirmam que as mulheres estão avançando muito, que há dez anos não havia o percentual que há hoje, e é verdade. Mas avançar não significa que o preconceito tenha acabado. Ainda existe, sim, uma diferença significativa. Além disso, quanto mais se avança na linha hierárquica, menor é o número de mulheres", avalia.

Entre as executivas ouvidas pela fundação, 55% disseram ter sofrido preconceito pelo fato de ser mulher e afirmaram que têm de ser mais competentes do que os homens para serem escolhidas. "A mulher nunca pode errar. O erro da mulher é maior do que o do homem porque gerenciar negócios não é o papel dela. A cultura inteira diz: se você está errando, então vá fazer outro papel porque esse não é o seu", diz Ghislaine ao Sinapse.

Betânia afirma ainda acreditar que esse panorama não vai mudar nas próximas décadas e não vê perspectivas de equiparação entre o número homens e mulheres na direção das empresas. "É um discurso manipulador dizer que vamos chegar a uma posição de igualdade em alguns anos. Há uma questão cultural. Além disso, no momento da maternidade, algumas param de trabalhar. Elas não vão competir nas mesmas condições com os homens para as posições de topo", conclui.

Esse diagnóstico também é feito por Flávio Kosminsky e Rodrigo Araújo, diretores da Korn/Ferry, empresa em São Paulo especializada na seleção de executivos. "As mulheres têm menor disponibilidade para se dedicar integralmente ao trabalho. São interrompidas por gravidez, casamento, responsabilidades que a cultura tradicional transfere para a mulher", diz. "O sucesso profissional ainda está relacionado à energia e ao tempo dedicados ao trabalho, e as mulheres sofrem uma pressão para estar em casa mais cedo", completa Araújo.

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Amália Sina, presidente da Walita
"Para entender essa situação, precisamos pensar numa sociedade marcada por uma divisão sexual do trabalho histórica, com separação muito rígida entre a esfera familiar e a produtiva. A familiar seria feminina, e a produtiva, masculina. Isso tem uma origem bem atrás e se reflete até hoje", diz a socióloga Laís Abramo, 50, especialista em temas de gênero e trabalho da OIT (Organização Internacional do Trabalho) para a América Latina.

Abramo explica que ainda persistem mecanismos de discriminação no mercado de trabalho porque a mulher ocupa uma parte importante do tempo em trabalhos não remunerados e não reconhecidos. Quando ela entra no mercado, começa numa posição subordinada. "A mulher exerce um trabalho que não é reconhecido como tal -em casa, com as crianças, com a família, cuidando de idosos e de pessoas doentes-, que não é valorizado no mercado. Por isso, ela tem menos tempo a dedicar à sua formação e ao trabalho remunerado."

Presidente da Dudalina, uma das maiores fábricas de camisas do país, com produção anual de cerca de 2,3 milhões de peças por ano, Sônia Hess de Souza, 49, é mais uma exceção à regra, que acaba se repetindo em sua própria empresa. Apesar das 800 mulheres que compõem seu quadro de 998 funcionários, nenhuma ocupa cargo de direção e, entre as lideranças nas fábricas, apenas 38% são mulheres. "Elas seguram a pirâmide da empresa, mas não estão nos altos cargos", diz.

Até pouco tempo atrás, Sônia contava com duas mulheres na direção. "Uma saiu por problemas de saúde, e a outra mudou do país", afirma. Para ela, há um momento na carreira da mulher em que a vida pessoal se coloca como uma opção ao trabalho.

Ela acredita que sua escolha de aceitar desafios profissionais acabou fazendo com que se casasse mais tarde -Sônia não teve filhos naturais, mas criou as três filhas do marido.

Apesar de não estarem ocupando os cargos mais altos, segundo a Fundação Seade, o contra-senso é que as mulheres saem cada vez mais de casa para trabalhar. Nunca foi tão grande a participação delas no mercado: no Estado de São Paulo, chega a 55%. Segundo estimativas do IBGE para 2004, a participação feminina na PEA (População Economicamente Ativa) brasileira dobrou de 1970 para cá, passando de 21% para 45,3%, o equivalente a 37 milhões de trabalhadoras.

Na contramão, no entanto, o levantamento mostra que o rendimento médio das mulheres que trabalham caiu, e que aumentou ainda mais o desemprego na população feminina economicamente ativa. Segundo a Fundação Seade, de São Paulo, há menos mulheres trabalhando em grandes empresas, menos mulheres com emprego formal e menos mulheres ganhando salários altos. Dados de junho da Pesquisa Mensal de Emprego e Desemprego, do IBGE, mostram que as mulheres brancas e amarelas ganhavam 20,5% menos do que os homens brancos e amarelos, enquanto as mulheres negras ganhavam 19,4% menos que os homens negros e 61,2% menos que os homens brancos e amarelos.

Sobre salários, a pesquisadora da Dom Cabral atribui parte da diferença ao estilo feminino. Betânia cita o livro "Women Don't Ask: Negotiation and the Gender Divide" (Princeton University Press, ainda não publicado no Brasil), da norte-americana Linda Babcock, que revela que as mulheres negociam menos seus próprios salários do que os homens e, quando decidem negociar, "fixam metas em média 15% menores".

Chieko Aoki, a conhecida presidente do grupo hoteleiro Blue Tree Hotels, confirma a tese acadêmica. "Quando vêm negociar salário, as mulheres são menos exigentes. Para os homens, a negociação sempre parece estar ligada à masculinidade e ao sucesso profissional. Para as mulheres, isso parece ser menos importante", diz. Sônia Hess de Souza, da Dudalina, analisa a situação de outro modo. "Para aprovar meu salário de presidente, precisei de três rounds de negociação", diz. "Homens que já ocuparam o mesmo cargo conseguiram impor suas vontades em, no máximo, duas conversas", completa.

Pedro Azevedo/Folha Imagem
Inês Corrêa de Souza, primeira mulher a presidir um banco no Brasil
Sobre a pequena presença feminina nos altos escalões das corporações, há ainda uma outra explicação. Os recrutadores de recursos humanos, em geral, argumentam que, na hora da seleção, é muito mais por falta de opção que mais homens são escolhidos, já que não há "perfis femininos" disponíveis para posições de chefia em uma empresa.

Júlio Lobos, diretor da consultoria Instituto da Qualidade e autor dos livros "Amélia, Adeus" e "Mulheres Que Abrem Passagem", é um deles. Lobos afirma que "elas não têm o mesmo apetite dos homens para se projetar no meio empresarial e não querem ser a número um". Lobos delega parte da responsabilidade dessa situação às próprias mulheres, por "não pleitear, não fazer o mercado se abrir".

Além desse e do "viés de personalidade ligado ao sexo", há outros lugares-comuns a derrubar, segundo Laís Abramo, da OIT, que destaca alguns: um deles sustenta que a mulher seria mais cara que o homem. "Algumas empresas até usam isso para justificar o salário menor delas, o que não é verdade, até porque quem paga a licença-maternidade é a Previdência estatal." Outro mito, segundo a socióloga, é a idéia de que a mulher estaria menos disposta a "vestir a camisa", a estar dedicada à empresa 24 horas por dia -idéia que pressupõe uma disposição masculina.

Um levantamento realizado pela ONG norte-americana Catalyst, especializada em estudar a participação das mulheres no mercado de trabalho, indicou que, entre as 353 maiores empresas apontadas pela revista "Fortune", as que têm um maior número de mulheres no comando lucraram cerca de 35% a mais do que as concorrentes menos diversificadas. Esse resultado, diz a Catalyst, é devido à heterogeneidade de visões e pensamentos que a mistura dos sexos proporciona.

No mercado consumidor, o lucro está nas mãos delas. Amália Sina, 40, presidente da Walita do Brasil, aponta que um dos fatores que a levaram ao comando da empresa foram pesquisas que mostraram que o poder de decisão na hora da compra é feminino. "A decisão de colocar uma mulher à frente do negócio foi uma estratégia internacional: 80% do que se vende hoje é decidido pela mulher. E os outros 20% são influenciados por ela. Então nada melhor do que ter uma mulher dirigindo essa organização, já que fazemos basicamente produtos e serviços cujos usuários ainda são elas", afirma.

"Se fosse homem, teria chegado mais cedo ao cargo", diz a carioca diplomada em administração pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) Inês Corrêa de Souza, 53, a primeira mulher presidente de banco no país. Até junho passado, Inês presidiu a subsidiária brasileira do suíço UBS Warburg, um dos cinco maiores bancos de investimentos do mundo. Saiu para montar uma consultoria própria.

Professora da USP (Universidade de São Paulo) e da FGV, Amália faz coro -também diz que teria chegado antes à presidência se não fosse mulher- e acredita que teve de se preparar mais do que os colegas do sexo oposto. Ela revela que o estereótipo feminino de candura e fragilidade ainda é senso comum no mundo corporativo. "O homem, quando fala de forma objetiva, clara e direta, é considerado assertivo. Se uma mulher fala da mesma maneira, é agressiva", diz.

Antes de deixar a presidência do banco, Inês havia passado 23 anos na Companhia Vale do Rio Doce e chegou ao cargo de diretora financeira, mas afirma ter sido obrigada a mostrar mais competência para superar o "conservadorismo" do núcleo masculino da empresa. Em uma viagem a Tóquio, ela lembra, não foi cumprimentada pelo presidente da corporação com a qual iria negociar em nome da Vale simplesmente por ser mulher.

A relação das mulheres com o mundo corporativo acaba interferindo também na vida familiar. Entre as divorciadas que chegaram ao topo, 64% dizem que a carreira foi o motivo principal da separação. "Mesmo que a mulher ganhe mais do que o marido, ela continua com a responsabilidade pela gestão da família, pela gestão da casa e pela educação dos filhos. É assim que elas percebem [a situação]. E os maridos também", conclui a pesquisadora da Dom Cabral. Voltamos ao ponto de partida: de novo, uma cultura que não permite muitas mulheres em postos de comando sinaliza que as tarefas domésticas continuam as mesmas para o sexo feminino.

Isso não varia muito entre países, segundo a mesma pesquisa. Não há relação entre o nível de desenvolvimento econômico e social dos países e o modelo masculino de gestão. A estatística mundial feita pela OIT comprova isso. Segundo a organização, apesar de as mulheres representarem mais de 40% da força de trabalho no mundo, é de 1% a 3% a fatia feminina que ocupa cargos de comando nas maiores empresas.

"A correlação é muito mais clara quanto ao tipo de cultura. Em países latinos, árabes e no Japão, a tendência machista é muito típica. Não só países latinos das Américas: na França, na Espanha e na Itália, que são países ricos, a situação é semelhante", afirma Betânia.

Anne Stevens, 55, vice-presidente mundial da Ford para a América do Sul, o Canadá e o México, também incluída na lista da "Fortune" como uma das mulheres mais poderosas do mundo dos negócios nos Estados Unidos, afirma que é preciso ter competência, conhecimento técnico e saber lidar com outras pessoas para se segurar na posição.

Mesmo a norte-americana Carleton "Carly" S. Fiorina, 49, executiva mais bem-sucedida dos Estados Unidos, título concedido pelo sexto ano consecutivo pela mesma "Fortune", diz ter sido discriminada na carreira por ser mulher. Hoje, Fiorina comanda a Hewlett-Packard, 11ª maior empresa de seu país. Quando esteve em São Paulo, em agosto, declarou ter passado por situações constrangedoras criadas por colegas homens para testá-la.

Mudanças na composição do comando das empresas, conclui Betânia, não serão visíveis nem nesta nem na próxima geração. "É preciso uma revolução cultural para que as mulheres se insiram definitivamente na direção do mercado de trabalho. Não imagino isso para as próximas décadas."

Colaboraram Carolina Chagas e Estanislau de Freitas, free-lance para a Folha de S.Paulo

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