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26/10/2004 - 03h04

As histórias em 10 quadrinhos

Waldomiro Vergueiro
especial para a Folha de S.Paulo

Na história da comunicação por imagens, o Brasil contribuiu decisivamente para o estabelecimento da linguagem quadrinista. Na segunda metade do século 19, o ítalo-brasileiro ngelo Agostini desenvolveu uma intensa atividade de crítica social por meio do humor gráfico nos jornais "Diabo Coxo" e "O Cabrião". Em 1869 criou, para o jornal "Vida Fluminense", "As Aventuras de Nhô Quim", consideradas por muitos a primeira história em quadrinhos do mundo, produzida quase 30 anos antes da americana "Yellow Kid". As edições facsimilares "Cabrião" (Editora Unesp/Imprensa Oficial, 474 págs., R$ 80) e "As Aventuras de Nhô Quim & Zé Caipora" (Senado Federal, 188 págs., R$ 50) disseminam hoje a obra de Agostini.

Como produto industrial, as HQs surgiram em grandes pranchas coloridas nos jornais norte-americanos. Eram as páginas dominicais, pelas quais passaram personagens como "Krazy Kat" e "Little Nemo". A tira diária, com três quadrinhos elaborados de forma a narrar uma ação e deixar um gancho para o dia seguinte, apareceu em 1907, com "Mutt e Jeff". As revistas surgiram na década de 1920, inicialmente como coletâneas de histórias de jornais. Conhecidas como "comic books", tiveram sua popularidade ampliada pelo aparecimento dos super-heróis, como "Super-Homem", "Batman" e "Mulher-Maravilha". Em francês, a disseminação dos quadrinhos se deu pelo álbum, produção luxuosa na qual são publicados personagens como Tintin e Asterix. Os Estados Unidos desenvolveram um produto similar, a "graphic novel", no final da década de 1970.

A relação entre quadrinhos e cinema vem de longa data. Ambos os meios surgiram no mercado no final do século 19 e jamais deixaram de trocar influências e temas. Grandes sucessos dos quadrinhos, como "Terry e os Piratas" e "The Spirit", beberam fartamente em enquadramentos, ângulos, iluminação e montagem das produções cinematográficas, ao mesmo tempo que diretores de cinema buscaram nas HQs a inspiração para seus filmes. Entre as superproduções cinematográficas recentes estão obras inspiradas nos quadrinhos, como "Batman", "Homem-Aranha", "X-Men" e "Spawn".

As últimas duas décadas do século 20 presenciaram a invasão do Ocidente pelos quadrinhos japoneses, os mangás. Produtos de uma indústria forte e com características próprias, eles são publicados em milhões de exemplares em sua terra natal. Vendidos a preços acessíveis, atingem todas as faixas etárias e camadas sociais. No Brasil, devido à grande concentração de imigrantes japoneses, já eram conhecidos bem antes de sua popularidade nos demais países, influenciando autores como Cláudio Seto, Paulo Fukue e Júlio Shimamoto.

Os apreciadores das HQs não precisam comprometer seu orçamento para apreciá-las: nas grandes cidades brasileiras, podem ir às gibitecas, que, abertas ao público, têm vastas coleções de revistas e álbuns. Ligadas ao poder público ou a instituições do terceiro setor, constituem uma alternativa barata e acessível para os amantes do meio. A primeira gibiteca, fundada em Curitiba em 1982, funciona até hoje (www.gibitecadecuritiba.hpg.ig.com.br), mas a maior é a Gibiteca Henfil, em São Paulo, que foi inaugurada em 1991 pela Secretaria Municipal da Cultura e conta hoje com mais de 70 mil publicações (sampa3.prodam.sp.gov.br/ccsp/gibiteca). Na cidade, há ainda a Gibiteca Sesi (www.sesisp.org.br/home/sociocultural/gibiteca.asp).

O potencial pedagógico das HQs foi descoberto na década de 1940, nos Estados Unidos. O Exército desse país criou manuais de treinamento em quadrinhos, a Igreja Católica as utilizou fartamente para divulgar a Bíblia e a vida de santos, e na China comunista a linguagem gráfica seqüencial foi utilizada para doutrinação ideológica. A editora Ebal esmerou-se na publicação de revistas com episódios da história brasileira e biografias de brasileiros ilustres e de santos. Nos últimos anos, cresceu o interesse pelo uso de HQs na educação formal, com professores de todos os níveis aceitando o incentivo oficial oferecido pela Lei de Diretrizes e Bases e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais. Sobre a orientação de professores, confira "História em Quadrinhos na Escola" (Paulus, 47 págs., R$ 6,50), de Flávio Calazans.

O interesse pelos quadrinhos como tema de pesquisas acadêmicas cresceu no mundo inteiro, e pesquisadores já constituem grupos de pesquisa que congregam profissionais de várias universidades, como o "Comic Art and Comics Area", da Popular Culture Association (home.earthlink.net/~comicsresearch/CAC). O Brasil é pioneiro no interesse acadêmico pelos quadrinhos -a primeira disciplina de graduação foi criada na UnB, no início da década de 1970. Nos últimos anos, multiplicaram-se as pesquisas que se transformaram em livros, entre as quais "Para Reler os Quadrinhos Disney" (Paulinas, 313 págs., R$ 25,30), de Roberto Elísio dos Santos, "Fantasia e Cotidiano nas Histórias em Quadrinhos" (Annablume, 137 págs., R$ 20), de Nadilson Manoel da Silva, e "Spawn, o Soldado do Inferno: Mito e Religiosidade nos Quadrinhos" (Difusão, 352 págs., R$ 39), de Cristina Levine Martins Xavier.

Fora do circuito comercial, os quadrinhos encontraram fértil campo criativo. A produção underground norte-americana, escola para artistas alternativos, consagrou Robert Crumb, Gilbert Shelton e S. Clay Wilson. Os fanzines, publicações não-profissionais elaboradas por entusiastas do meio, formam legiões em muitos países, inclusive no Brasil. A comunidade dos fanzineiros constitui um grupo aguerrido e incansável, que luta por reconhecimento artístico e produz milhares de títulos anualmente, em meios impressos e eletrônicos. "Ficção", o mais antigo fanzine brasileiro, foi criado por Edson Rontani em 1965, em Piracicaba (SP).

Atingindo um público mais maduro, os quadrinhos autorais adultos desenvolveram-se na esteira das "graphic novels", apresentando o que de mais ousado já foi criado no meio. Fugindo do simples relato ficcional, eles embarcaram em reminiscências e memórias pessoais ("Maus", de Art Spiegelman, e "No Centro da Tempestade", de Will Eisner), em reportagens gráficas ("Palestina", de Joe Sacco) ou em relatos históricos de forte teor investigativo ("Do Inferno", de Alan Moore e Eddie Campbell). No Brasil, os quadrinhos autorais alcançam alto nível de qualidade nas obras de Lourenço Mutarelli, Laerte Coutinho e André Toral, entre outros.

A internet representou um novo fôlego para autores de quadrinhos. Com ela, ficou para trás o tempo em que o artista peregrinava de estúdio em estúdio com seu porta-fólio. A rede tornou-se vitrina, com quadrinistas elaborando páginas pessoais e sites coletivos em que divulgam sua produção (exemplos: www.gardenal.org/mauhumor, www.allansieber.com, 10loucos.blogspot.com e www.revistamosh.com). Ao mesmo tempo, o meio fez emergir uma nova modalidade de linguagem, que agrega a multimídia. São os chamados "e-comics", de linguagem híbrida, ainda não totalmente explorados, mas que pululam na internet. No entanto, apesar do otimismo geral, é incerta a retribuição econômica à produção quadrinista em meios eletrônicos.

Leia mais
  • Caminho das Pedras: A vida adulta das HQs
  • Leia prefácio de "Spawn, o Soldado do Inferno"

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