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12/08/2005
-
19h11
Editor de Ilustrada da Folha Online
A porta do avião abriu. Rajadas de vento e o motor ensurdecedor. Altura de 4.250 pés ou 1.300 metros. Sentei no estribo (escadinha). O instrutor gritou: "Ao montante". Fiquei em pé e segurei o suporte da asa. Frio como uma barra de gelo. O avião estava a mais de 100 km/h.
Era o meu primeiro salto sozinho de pára-quedas, após uma semana de aulas. Eu tinha mais de 20 anos e nenhuma loucura no currículo. Queria me sentir especial. Talvez influenciado por algum filme ou revista de aventura. Ou por algum instinto suicida ou para chocar amigos e família. Quem vai saber?
Tirei os pés do estribo, as mãos escorregaram, uma força me puxou para baixo, o vento me engoliu. Havia uma fita de três metros que ligava o avião ao equipamento de salto (15 kg nas costas). Com a queda, houve a abertura automática do pára-quedas.
Retomar o sentido de realidade e a noção de espaço levou alguns segundos. Ainda havia um choro preso na garganta, um aperto no coração, a respiração ofegante. De imediato, enquanto despencava, procurei algum rasgo no velame (parte superior, que se abre como um cogumelo), se alguma linha do pára-quedas arrebentara.
Um problema comum é o "twister": as linhas ficam embaraçadas. O risco é virar um pião no ar. É preciso logo separar as linhas com as mãos ou remexer o corpo para desfazer o nó. Caso contrário, a saída extrema é abandonar o pára-quedas principal e acionar o reserva.
"Meu Deus, onde está a biruta?"
De cada dez pára-quedistas de primeira viagem, nove enfrentam o "twister", me alertou o instrutor. Tive sorte no "batismo": as linhas não enroscaram. Mas os outros dois novatos do meu vôo sentiram o problema na pele.
Na altura do peito, eu checava o altímetro. Do alto, a pequena e árida cidade de Morada Nova (160 km de Fortaleza) parecia uma maquete que, segundo a segundo, ganhava formas mais definidas e dimensões maiores. Um dos meus maiores receios se concretizou: perdi minha localização.
Apreensivo, meu coração formigava. O altímetro marcava 2.000 pés (610 metros). "Meu Deus, onde está a biruta? Não consigo ver os referenciais de pouso. Será que o vento mudou de direção? Cadê a caixa d'água?", pensava, balançando freneticamente a cabeça para todos os lados.
O alívio chegou aos poucos. O rádio, instalado no lado direito do capacete, começou a me guiar. Era a voz do outro instrutor, que acompanhava o salto no local determinado para o pouso. "Ripardo, puxe o batoque da direita. Faça 90 graus", ordenava.
Os dois batoques (cordinhas), alças amarelas presas nas quatro linhas, servem para manobrar o pára-quedas. Foi patético. Estava tão atordoado que confundi direito com esquerdo. "Puxe o batoque da direita, da direita", repetia. Retomei a concentração, corrigi a rota, após a agonia.
Foi o seguinte pensamento que me fez relaxar: "Bem, se o instrutor está me vendo lá embaixo, isso significa que estou na direção do vento. Qualquer burrada, ele me alerta pelo rádio". A partir desse momento, resolvi planar com mais calma, admirar a paisagem, registrar aquela angulação da cidade. Tudo tão minúsculo diante do manto azul coberto de nuvens. Fiz curvas. Sacudi as pernas. Gritei.
Euforia e ferimentos
O altímetro marcou 1.000 pés (305 metros). Era a senha para sobrevoar o ponto A (caixa d'água da cidade), definido pelo instrutor. Quanto mais desrespeitasse esse padrão, mais difícil se tornaria a aterragem, ou seja, pousaria muito longe do local determinado.
Próximo à pista de pouso, havia uma cerca, uma escola, outras casas, um açude. Passei pelo ponto B (cerca) a 600 pés (183 metros) e pelo ponto C (início da pista de pouso) a 400 pés (122 metros). Nesse instante, a adrenalina sobe. O tempo se esgotando. Baixas atitudes.
Tudo já se mostrava nítido, reconhecível, palpável. Já começava a sentir falta do silêncio e da visão do quebra-cabeça terrestre a 4.000 pés. Em segundos, o corpo no chão. O medo de aterrar, de machucar as pernas, de bater a cabeça. Pior: às vistas de um considerável número de espectadores. Pára-quedistas são aventureiros.
"Prepara-se para aterrar", falou o instrutor. Mãos firmes nos dois batoques. Daí em diante, era só aguardar o comando de "flare" --dado pelo rádio a uns cinco metros do chão. Neste momento, puxei até a cintura os dois batoques. A sensação é de freio. O corpo paira no ar. Suspiro profundamente. É uma emoção gostosa de arrebatamento e euforia --como se o coração recebesse uma flechada.
O salto durou cerca de seis minutos. "Você conseguiu". O corpo vibrava. O sangue parecia borbulhar. Neurônios fervendo. Os músculos relaxados em frenesi. Gritos e aplausos na multidão. Neste instante, o inesperado, o susto. Ainda sob a ação do vento, o pára-quedas começou a me arrastar pela estrada cheia de pedras.
Eu havia esquecido de puxar um dos batoques até amansar o pára-quedas. É como se o toureiro ficasse de costas para o touro antes de levá-lo à lona, até aplicar o golpe de misericórdia. Paguei pelo erro. Ralei feio minhas mãos nas pedras. Nada grave. Agarrado ao pára-quedas, admirei, com um sorriso permanente e quase infantil, o salto dos outros dois colegas. Refiz mentalmente tudo que aconteceu comigo. "E aí, cara, está pronto para outro salto?", perguntaram. Naquele momento, qualquer resposta seria conseqüência de uma emoção inesquecível.
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SÉRGIO RIPARDOEditor de Ilustrada da Folha Online
A porta do avião abriu. Rajadas de vento e o motor ensurdecedor. Altura de 4.250 pés ou 1.300 metros. Sentei no estribo (escadinha). O instrutor gritou: "Ao montante". Fiquei em pé e segurei o suporte da asa. Frio como uma barra de gelo. O avião estava a mais de 100 km/h.
Arquivo pessoal |
Lição do pára-quedas: siga os sinais e o pouso será tranqüilo |
Tirei os pés do estribo, as mãos escorregaram, uma força me puxou para baixo, o vento me engoliu. Havia uma fita de três metros que ligava o avião ao equipamento de salto (15 kg nas costas). Com a queda, houve a abertura automática do pára-quedas.
Retomar o sentido de realidade e a noção de espaço levou alguns segundos. Ainda havia um choro preso na garganta, um aperto no coração, a respiração ofegante. De imediato, enquanto despencava, procurei algum rasgo no velame (parte superior, que se abre como um cogumelo), se alguma linha do pára-quedas arrebentara.
Um problema comum é o "twister": as linhas ficam embaraçadas. O risco é virar um pião no ar. É preciso logo separar as linhas com as mãos ou remexer o corpo para desfazer o nó. Caso contrário, a saída extrema é abandonar o pára-quedas principal e acionar o reserva.
"Meu Deus, onde está a biruta?"
De cada dez pára-quedistas de primeira viagem, nove enfrentam o "twister", me alertou o instrutor. Tive sorte no "batismo": as linhas não enroscaram. Mas os outros dois novatos do meu vôo sentiram o problema na pele.
Na altura do peito, eu checava o altímetro. Do alto, a pequena e árida cidade de Morada Nova (160 km de Fortaleza) parecia uma maquete que, segundo a segundo, ganhava formas mais definidas e dimensões maiores. Um dos meus maiores receios se concretizou: perdi minha localização.
Apreensivo, meu coração formigava. O altímetro marcava 2.000 pés (610 metros). "Meu Deus, onde está a biruta? Não consigo ver os referenciais de pouso. Será que o vento mudou de direção? Cadê a caixa d'água?", pensava, balançando freneticamente a cabeça para todos os lados.
O alívio chegou aos poucos. O rádio, instalado no lado direito do capacete, começou a me guiar. Era a voz do outro instrutor, que acompanhava o salto no local determinado para o pouso. "Ripardo, puxe o batoque da direita. Faça 90 graus", ordenava.
Os dois batoques (cordinhas), alças amarelas presas nas quatro linhas, servem para manobrar o pára-quedas. Foi patético. Estava tão atordoado que confundi direito com esquerdo. "Puxe o batoque da direita, da direita", repetia. Retomei a concentração, corrigi a rota, após a agonia.
Foi o seguinte pensamento que me fez relaxar: "Bem, se o instrutor está me vendo lá embaixo, isso significa que estou na direção do vento. Qualquer burrada, ele me alerta pelo rádio". A partir desse momento, resolvi planar com mais calma, admirar a paisagem, registrar aquela angulação da cidade. Tudo tão minúsculo diante do manto azul coberto de nuvens. Fiz curvas. Sacudi as pernas. Gritei.
Euforia e ferimentos
O altímetro marcou 1.000 pés (305 metros). Era a senha para sobrevoar o ponto A (caixa d'água da cidade), definido pelo instrutor. Quanto mais desrespeitasse esse padrão, mais difícil se tornaria a aterragem, ou seja, pousaria muito longe do local determinado.
Próximo à pista de pouso, havia uma cerca, uma escola, outras casas, um açude. Passei pelo ponto B (cerca) a 600 pés (183 metros) e pelo ponto C (início da pista de pouso) a 400 pés (122 metros). Nesse instante, a adrenalina sobe. O tempo se esgotando. Baixas atitudes.
Tudo já se mostrava nítido, reconhecível, palpável. Já começava a sentir falta do silêncio e da visão do quebra-cabeça terrestre a 4.000 pés. Em segundos, o corpo no chão. O medo de aterrar, de machucar as pernas, de bater a cabeça. Pior: às vistas de um considerável número de espectadores. Pára-quedistas são aventureiros.
"Prepara-se para aterrar", falou o instrutor. Mãos firmes nos dois batoques. Daí em diante, era só aguardar o comando de "flare" --dado pelo rádio a uns cinco metros do chão. Neste momento, puxei até a cintura os dois batoques. A sensação é de freio. O corpo paira no ar. Suspiro profundamente. É uma emoção gostosa de arrebatamento e euforia --como se o coração recebesse uma flechada.
O salto durou cerca de seis minutos. "Você conseguiu". O corpo vibrava. O sangue parecia borbulhar. Neurônios fervendo. Os músculos relaxados em frenesi. Gritos e aplausos na multidão. Neste instante, o inesperado, o susto. Ainda sob a ação do vento, o pára-quedas começou a me arrastar pela estrada cheia de pedras.
Eu havia esquecido de puxar um dos batoques até amansar o pára-quedas. É como se o toureiro ficasse de costas para o touro antes de levá-lo à lona, até aplicar o golpe de misericórdia. Paguei pelo erro. Ralei feio minhas mãos nas pedras. Nada grave. Agarrado ao pára-quedas, admirei, com um sorriso permanente e quase infantil, o salto dos outros dois colegas. Refiz mentalmente tudo que aconteceu comigo. "E aí, cara, está pronto para outro salto?", perguntaram. Naquele momento, qualquer resposta seria conseqüência de uma emoção inesquecível.
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