Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Comida

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Nina Horta

Vendedoras de rua

E churrasquinhos de quê? Não eram de gato, não. De baleia, envolvidos em casca de banana, salsichas, peixe

Já falei que, logo depois que sai um livro do Carlos Alberto Dória, como o "Formação da Culinária Brasileira" (ed. Três Estrelas), levo um ano pesquisando só para me divertir.

Claro que eu sabia o que era a comida de rua, negras de ganho, carregando a bandeja na cabeça e descendo-a sobre um tripé para fazer a venda. Vemos em ilustrações dos primeiros viajantes, o príncipe Maximiliano comentou em 1860 sobre "os pretos nas ruas carregando cestas cheias das mais maravilhosas frutas para vendê-las".

Mas para os baianos de Salvador eram tão comuns que não causavam espécie. Já estavam lá havia dois séculos e mesmo antes disso corriam as ruas de Lisboa. (Mais ou menos a metade dos vendedores de rua eram negros ou mulatos, e a maioria formada de mulheres.)

Um americano resolveu estudar esses vendedores por meio de seus testamentos, pois não havia diários. Sabia que na África ocidental e na central as mulheres eram grandes vendedoras de rua, charmosas, voz forte para os pregões, com facilidade de fidelizar clientes, cabeça boa para os cálculos necessários.

Pegou o caso de Ana de São José da Trindade, ex-escrava, que tirara uma licença para vender comida na rua, de porta em porta, em Salvador, para ela e para três de suas escravas. Morreu em 1823 e, para nossa surpresa, deixou no seu testamento mais coisas do que o dono de um "food truck" deixaria.

Era analfabeta, o que era de se esperar, vinda da África oriental e trazida para o Brasil ainda mocinha. Comprara sua carta de alforria e, quando morreu, deixou uma casa de três andares, nove escravos, uma bela coleção de joias, que incluía crucifixos, escapulários, rosários, um relicário, muitas correntes de ouro e duas fivelas de ouro para sapatos. Um par de brincos de água-marinha e 12 diamantes, um anel de topázio e outro com dez brilhantes rosados. Tinha um garfo, uma colher e uma molheira de prata.

Os baianos chegavam a reclamar das ruas de Salvador entupidas de vendedores. Centenas deles iam de casa em casa atravessando as ruas empoeiradas de cá para lá, cantando seus pregões. Era a hora em que a dona de casa escutava e mandava suas escravas fazerem a compra e negociarem o preço. Podem imaginar o assunto que era isso!

Carregavam o que vendiam em cestas na cabeça, ou em potes, ou em bandejas, e mais tarde (1860) em caixas de vidro. Nem todas andavam vendendo pelas ruas. Punham uma esteira no chão.

E eram verduras e ovos e galinhas e carne e peixe, feijão, milho, farinha, leitões, sal, quiabos, pepinos, cebolas, inhame, cará, abóboras, mangas, goiabas, mamões, melancia. E vendiam também comida pronta, como churrasquinhos, por exemplo. E adivinhem churrasquinhos de quê? Não eram de gato, não. De baleia, envolvidos em casca de banana, salsichas, peixe grelhado.

E comidas desconhecidas dos europeus como "caruru, vatapá, pamonha, canjica, acaçá, acarajé, ubobó", pratos feitos de farinha de mandioca, arroz, milho, feijão-fradinho, camarão seco, amendoim, preparados com quiabos, cebola, alho e tomate, cozidos em óleo de dendê com especiarias. Uma mistura do secular e do divino (o que fica para outra vez), ao escarafuncharmos mais o livro do Dória.

ninahorta@uol.com.br

Leia o blog da colunista

ninahorta.blogfolha.uol.com.br


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página