Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Comida

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Nina Horta

A faca e a colher

Tenho inveja da faca, mata, corta, sangra; já a colher é toda doce, sem perigos, ligada à criança e ao velho

Acho que nada é tão diferente quanto a faca da colher e nem sei de qual das duas gosto mais. Tenho inveja da faca --nada de freudianismos, por favor, da faca mesmo, vital, mata, corta, sangra, poderosa. Daria tudo na vida para saber cortar cebola como um cozinheiro afiado, acho uma arte, uma beleza.

Meu reino por ter facas amoladas por mim, como é bom saber tratar uma faca, a sua faca que faz exatamente o que você quer, destrincha a galinha com suavidade doce, solta as flores das hastes num só toque, divide, compartilha, transforma.

Já a colher é toda doce, sem perigos, ligada à criança e ao velho, protege a boca, sustenta a sopa. Se não é a melhor, sem asperezas nem quinas, por que nesses tempos tão modernos teríamos a colher de pau em todas as cozinhas e ainda a preferida? Quem ao mexer uma polenta, um picadinho, não corre para ela no meio de dezenas de outras, lá à mão?

A nutricionista contratada proibiu colheres de pau, como já havia proibido mesas de madeira. Suely, que cozinha com garra, com força nos braços adquirida em anos e anos de fogão, retruca que a colher de plástico se quebraria ou, pior, derreteria dentro da comida. Mas, segundo a nutricionista, é a lei, ora, a lei...

E tem tanta modinha chegando. Dessa vez, coisa que adoro. Servir comida em outros recipientes que não pratos. Na vida dos cozinheiros já tivemos novidades como o camarão na moranga, o arroz no abacaxi, salada de abacate nas suas metades, siri na concha e por aí vai.

Os grandes restaurantes do mundo não sabem mais o que inventar, usam folhas verdes, tábuas, cumbucas, granito, vidro, pedras comuns, casca de árvore, enfim, nada que caiba comida lhes é estranho. Os mais audazes podem jogar a sobremesa de chocolate quente sobre a mesa fria de mármore e a sobremesa se compõe ali mesmo, cada uma com um formato.

Fiz um casamento onde uma das comidas seria servida em cumbucas índias, negras, do Pará. Coisa preciosa. Os garçons e cozinheiros e copeiras jamais usam a louça da festa para comer. Desorganizaria tudo o que já está posto e arrumado nos seus lugares para a hora de entrar em cena. Pois nesse dia, quando chegaram para o almoço e viram as cumbucas, simplesmente avançaram sobre elas para se servirem num à vontade total.

Coisa atávica, um reconhecimento do objeto, do côncavo que haviam usado quando crianças, desde que se conheciam por gente. A cumbuca é feita para se comer nela, comida de caldo é comida de cumbuca. Foi uma dificuldade recolher tudo de volta, até os seguranças levaram as cabaças para seus postos. Era o prato de todos, o ur prato, do tempo da inocência, da fogueira, da água limpa.

Quer coisa melhor do que uma ostra na própria concha, bem tirada? Tem que ter boa função, não vale só pela belezura. Bonito e funcional. Não estou deserdando o prato. Claro que muitas vezes é ele o melhor substituto, mas como desdenhar a própria romã, por exemplo, e comer suas sementes num prato, de colher? Ou descascar a pamonha na cozinha?

É preciso tentar aprender a comer com a mão, na folha, no coco, na casca da tartaruga. De novo.

ninahorta@uol.com.br
Leia o blog da colunista

ninahorta.blogfolha.uol.com.br


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página