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Carne sagrada

Reportagem visitou neste mês restaurante especializado em carnes maturadas a seco, em grandes peças com osso, em Buenos Aires, terra do papa Francisco

LUIZA FECAROTTA EM BUENOS AIRES

Li por aí que o papa Francisco gosta de tango, é torcedor do clube de futebol San Lorenzo e leitor de Jorge Luis Borges. Será que ele gosta das carnes argentinas?, fiquei me perguntando.

Sim, ele gosta, descobri. Pudera: é filho de imigrantes italianos e nasceu na Argentina, que concentra as melhores carnes do mundo -a matéria-prima em si, digo.

Ali o boi é criado em pastos planos, quase sempre em confinamento, para que não crie músculos, que deixam a carne rija. O resultado é oposto: a carne fica marmorizada, com gordura entremeada.

Pois, no começo deste mês, estive em seu país para conhecer alguns dos principais restaurantes de Buenos Aires, que me foram recomendados pela jornalista de gastronomia do jornal "Clarín" Raquel Rosemberg.

Parece amador, mas foi a primeira vez que vi, a olhos nus, o salão de um restaurante a exibir uma vitrine de carnes a maturar a seco -coisa comum esquina aqui outra acolá, em Nova York.

Não é especialmente apetitoso observar aquelas peças enormes de carne, com osso (para que fiquem mais saborosas), ali acomodadas por 30, 60 ou até 103 dias. Este último período, mais extenso, foi incorporado há pouco no cardápio do Elena, o restaurante de que mais gostei no rápido tour portenho.

Com temperatura e umidade controladas, a carne passa por um processo no qual perde água (e até 30% de seu tamanho), fica preta e com a gordura branca.

Mas, à mesa, a história é outra: fica-se a salivar.

Os nacos de carne -cortes como bisteca, filé-mignon, contrafilé- têm sabor mais concentrado e são mais macios. Com o tempo, as enzimas atacam as fibras.

Vale frisar, porém, que enzimas também agem no método tradicional de armazenamento no Brasil, no qual as carnes são embaladas a vácuo e refrigeradas, a maturação úmida.

Pois a técnica conhecida como "dry aged" teve origem com os nossos antepassados, na época em que caçadores penduravam ao ar livre os animais capturados e os deixavam quase apodrecer, para amaciar sua carne.

Mas o que nos interessa aqui, decerto, não é só a textura, mas o sabor.

DEFUMADOS

No Elena, instalado no hotel Four Seasons, na Recoleta, as carnes são besuntadas em uma combinação de ervas (tomilho, salsa e alecrim) embebidas em azeite. Levam ainda sal marinho em escamas, da Patagônia argentina, que ajuda a realçar o sabor.

Depois disso, são acomodadas em uma grelha a gás, sobre pedras vulcânicas (o "char-broiler"), na qual sobem labaredas em torno das peças, que promovem caramelização externa da carne e permitem que o sabor fique mais acentuado e defumado.

O purê de batatas acalmou o paladar. Não é um "purê do Robuchon", que ganhou fama no mundo, do francês Joël Robuchon. Tampouco um "aligot" de Alex Atala, levado à mesa pelo garçom, que estica, incessante, a pasta de batata e queijo de lá pra cá, com o auxílio de colheres.

Mas, sabe, o purê do Elena combina batatas com creme de leite e manteiga e alcança uma textura aveludada, dos deuses. E passa por uma rápida defumação com toras de quebracho, uma árvore da América do Sul.

E ainda restou lugar -na cabeça, pelo menos- para encerrar com uma sobremesa e tanto: um sorvete artesanal que faz homenagem à clássica chocotorta. Combina doce de leite (o sabor predominante), creme de queijo e bolachas de chocolate.

Paguei a conta com a promessa de voltar para provar a ala de charcutaria de cabo a rabo. Repare: tem bresaola de Kobe (o típico embutido italiano com a carne japonesa supermarmorizada), peito de pato curado, salame, presunto. E os embutidos são processados no próprio salão.

Mais adiante, aliás, fica a cozinha à mostra, na qual o vermelho sobressai, e exibe um trabalho orquestrado, silencioso e intenso.


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