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Depoimento
Encantadora até ao revelar suas contradições
ALCINO LEITE NETO EDITOR DA TRÊS ESTRELASQuando assumi o cargo de editor de moda da Folha, em 2005, a primeira estilista que procurei foi Clô Orozco. Havia no meio da moda tal unanimidade a respeito de seu nome, que julguei pertinente conhecê-la logo e saber como trabalhava.
Marcamos um encontro na fábrica da Huis Clos. A estilista me mostrou, orgulhosa, cada departamento da elegante construção que tinha mandado erguer na deteriorada Barra Funda e, em seguida, convidou-me para almoçar.
O almoço também ocorreu na fábrica, numa cozinha high-tech onde ela mesma -uma gourmet aplicada- costumava às vezes preparar alguns pratos. Conversamos durante muito tempo, acompanhados do sociólogo Carlos Alberto Dória, seu ex-marido.
Clô explicou seu processo criativo, discorreu sobre a moda brasileira e contou sobre sua vida: os avós espanhóis, a faculdade de sociologia, o flerte com a esquerda durante a ditadura, a paixão pela moda. "Meu pai era comunista e detestava tudo que era supérfluo. Deve ser por isso que fiquei fútil", disse.
Não havia nada de fútil em Clô Orozco: tudo parecia calculado e necessário, até mesmo a superficialidade, esse recurso que temos para poder tornar a vida mais tolerável e bonita.
Fiquei encantado com ela, com as contradições todas de seu caráter, que a estilista me expunha abertamente: a fragilidade e o vigor, a honestidade e a elegância, a vaidade e o recato.
Também suas criações eram encantadoras, uma expressão direta do que ela trazia dentro de si e do que sonhava para as mulheres, com uma pitada de utopia: conciliar a extrema feminilidade com uma audaciosa independência, combinar o prazer suscitado pelas roupas com o desejo de se impor objetiva e intelectualmente no mundo.
A moda talvez não seja capaz de tanto, mas ela acreditava nisso e construiu sua vida sobre esse ideal -o que é um pouco difícil de compreender, se achamos que as roupas servem apenas aos costumes ou à economia.
Clô Orozco pertence a uma geração de estilistas brasileiros que imaginou que a moda poderia ser também uma expressão cultural, um modo de entender a nossa época, de refletir e falar sobre ela, a partir desses signos-coisas tão superficiais, como a pele, os tecidos e as costuras.
Foi uma das mulheres mais adoráveis que conheci. Eu desejaria não estar escrevendo este artigo. Eu queria estar ao lado dela, conversando sobre o cinema de François Truffaut.