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Há 50 anos em Congonhas, Percival nunca saiu do chão

Sem nunca embarcar numa aeronave, engraxate de 65 anos tem a memória da evolução do aeroporto mais antigo de SP

Mesmo aposentado, ele continua trabalhando no local em que já lustrou os pés de Pelé, Roberto Carlos e Lula

ROBERTO DE OLIVEIRA DE SÃO PAULO

Sobre a cabeça, um número incalculável de aviões. Sob as mãos, quase meio milhão de sapatos engraxados. É como se enfileirasse um calçado atrás do outro de São Paulo até Santos, ida e volta.

"Se não foi isso, está perto disso", brinca Percival Figueiredo. Aos 65 anos, seu caminhar é lento. Fraqueja na hora de encarar a escada rolante que leva ao subsolo do aeroporto de Congonhas, onde trabalha. "É coisa moderna."

Só que a memória não titubeia quando o assunto é a função que exerce há 50 anos no aeroporto mais antigo de São Paulo. Percival é um dos funcionários com mais tempo de casa em Congonhas, que completou 77 anos na última sexta-feira.

Aos 15 anos, ele foi convidado a engraxar sapatos do pessoal da Aeronáutica. "Precisava ajudar a minha mãe, que era doentinha e sem marido, a cuidar dos meus quatro irmãos", lembra. "Só estudei até o segundo ano."

Com os militares, ficou três anos. Depois, seguiu para a engraxataria do aeroporto, que já mudou de lugar ao menos dez vezes. Diante de Percival, sentaram-se "reis", como Pelé e Roberto Carlos, bonachões, como os apresentadores Chacrinha e Bolinha, já falecidos, e políticos dos mais variados naipes. Dos "grandões", recorda-se dos ex-presidentes José Sarney e Lula.

Ganhou muita gorjeta desse pessoal, Percival? "Essa raça não dá nada para ninguém", diz ele. "Quem paga a conta dos políticos são sempre os puxa-sacos."

Antes de o tênis conquistar o figurino masculino, Percival chegava a engraxar 80 pares de sapatos num só dia.

"Famílias inteiras vinham aqui passear. Congonhas era o lugar da diversão. Os pais traziam os filhos para todos juntos engraxarem os sapatos", emociona-se. "Naquela época, aqui era pequenininho, mas tinha um lindo jardim. Hoje, é uma bagunça."

Apesar de aposentado desde 23 de outubro de 2003, ele nunca parou de trabalhar.

Só faltou um dia para ir ao enterro do cunhado, morto há dez anos. Até dois meses atrás, a jornada era de segunda a domingo, com folgas intercaladas. Hoje, encara das 14h às 22h e descansa em feriados e finais de semana.

Percival engraxa cerca de 15 pares de sapatos por dia. O cliente paga R$ 12 pelo serviço à engraxataria. O salário dele gira em torno de R$ 650.

"O grosso mesmo vem das gorjetas", diz. A mais generosa foi de R$ 50, de "cliente comum". A freguesia costuma dar R$ 2. Com sorte, R$ 5.

ALIANÇA DE NOIVADO

Percival já não paga mais o ônibus que sempre usou para deslocar-se da região do Jabaquara até Congonhas. Sem trânsito carregado, o trajeto demora cerca de 20 minutos. Jamais chegou atrasado.

Ultimamente, anda todo orgulhoso ao exibir a aliança de noivado na mão direita. Três anos e meio atrás, começou a "enrolar a noiva", que namora há sete. Nunca foi casado. Nem tem filhos.

Espera agora uma casa do CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) para selar de vez a união. Mas descarta a hipótese de abandonar a graxa. "Se eu parasse de trabalhar, já teria morrido faz tempo."

Nesses 50 anos de engraxate, o pior momento foi a noite de 17 de julho de 2007, quando o Airbus da TAM que vinha de Porto Alegre ultrapassou o fim da pista e explodiu do outro lado da avenida Washington Luís, num acidente que provocou a morte de 187 pessoas que estavam a bordo da aeronave e de outras 12 que estavam em solo.

"Um corre-corre danado. Ouvíamos histórias ao vivo, na sapataria, nos corredores e na TV. Doeu demais, sabe?"

A convivência diária com aviões nesses últimos 50 anos não foi suficiente para convencer Percival a embarcar numa aeronave. Medo?

"Imagina. Até me oferecem passagem e hotel. Só que eu não tenho ninguém para visitar. Vou viajar para quê?"


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