Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Cotidiano

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Náufragos do Tietê

Área onde será construída a Nova Marginal já abriga grupo de moradores de rua

APU GOMES LAURA CAPRIGLIONE DE SÃO PAULO

Se não fosse o ronco ensurdecedor dos motores, somado à gritaria das buzinas, se desaparecesse a fuligem preta que sai dos escapamentos, se o rio Tietê não tivesse aquele cheiro onipresente de ralo, e se, por fim, zerasse o risco de ser atropelado pelos automóveis e ônibus e caminhões e motos que trafegam em alta velocidade pela marginal, aquela ilha poderia ser um paraíso para se viver.

O pedaço de terra cercado de um mar de carros por todos os lados surgiu quando, no segundo semestre de 2011, foram assentadas as pilastras do complexo rodoviário conhecido como Nova Marginal, colado à ponte das Bandeiras, zona norte da cidade. Ficou vazio por seis meses.

No último período, porém, é lá, em uma casinha sem água e sem luz (televisão, nem pensar), mas com cama de casal, sofá e quadros pelas paredes, que mora "Luana, só Luana", como ela se define, 34, artista plástica, soropositiva para HIV. Vive só.

Luana fabrica e vende esculturas feitas de papel machê, raspas de madeira e cola, pintadas em cores vivas, que ela expõe em um showroom improvisado na ilha.

O crocodilo verde sai por R$ 30, a garça por R$ 20, mesmo preço do papagaio. A boneca montada na onça, obra mais sofisticada, sai por R$ 300. Mas Luana está mesmo ilhada. Impossível parar o veículo no meio da via expressa para contemplar e arrematar algum trabalho. Ela se contenta com as buzinadas simpáticas que os caminhoneiros lhe endereçam.

Os cinco cachorros e o gato de Luana, não se sabe como, descobriram que a marginal é mortal. Nunca cruzaram a pista.

PEITOS NATURAIS

O nome de batismo de Luana, ela logo entrega, é Francisco José de Sousa Santos. Nasceu em Taíba, antiga aldeia de pescadores transformada em praia turística do Ceará, a 76 km de Fortaleza. Quer voltar para lá.

Com 14 anos, o menino efeminado que tinha sido abusado por um tio estava em São Paulo, trabalhando para uma cafetina chamada Célia Camburão, que lhe aplicou silicone nos peitos e nas nádegas.

Luana jura que Célia Camburão era um cirurgião plástico que abandonou profissão, mulher e filho para, também ele, se transformar em travesti. Ela orgulha-se dos peitos "tão naturais" que Célia, morta em um infarto, deixou-lhe. E mostra-os.

Luana é hoje um dos cerca de 50 moradores de rua que vivem naquela região.

"O lugar é excelente", diz Edna, 23, também travesti, que se esconde sozinha em uma barraca debaixo da ponte. Negra, trajando um vestido curto estampadinho de azul, Edna está com fome. Aos gritos, pede a Luana alguma coisa para comer. Ok.

TRAVESSIA DE SORTE

Edna tem de atravessar a pista expressa para atingir a casa da vizinha. Como se estivesse dançando, Edna levanta o braço musculoso, cheio de pulseiras de plástico, e, sorrindo, aponta o dedo para o céu. É seu jeito de avisar os motoristas de que vai cruzar a pista. Incrível, os carros dão finas em seu corpo e não a tocam. Deu sorte.

A Nova Marginal ajudou a criar o ambiente favorável aos moradores. O paisagismo plantou touceiras fechadas que jogam seus ramos até o chão. "É o disfarce perfeito. Ninguém te vê e o chão é plano, confortável para dormir", diz Jonas, catador de lixo.

ÁGUA E CHURRASCO

Há poucos meses, moradores descobriram um duto de água limpa --segundo eles-- desaguando no Tietê.

"Deve ser de chuva ou de lençol freático", diz o ex-pastor evangélico Francisco das Chagas Dutra, enquanto toma banho. Logo, uma mulher e um homem chegam. Eles lavam e estendem roupas na margem concretada do rio.

Dutra diz que veio com a família de São José dos Campos (94 km de São Paulo) para abrir uma igreja. Não deu certo, a mulher o abandonou e ele caiu na bebida. "Meu lugar agora é aqui."

Do outro lado da marginal fica o restaurante OK Grill, especializado em rodízio de carnes, inclusive de avestruz, javali, jacaré, cordeiro, codorna e rã. Nas poucas vezes em que o cheiro de ralo do rio dá uma folga, Luana sente forte o das carnes assando na churrascaria. "Uma delícia", ela diz. Mas, é claro, nunca foi lá.

Na hora do almoço Luana cozinha em uma fogueirinha ao lado da pista --ela tem batatas, 3 kg de tomate, arroz e frango doados por feirantes. Os caminhões passam, buzinam e mexem com ela. "Quer comer?", Luana oferece, maliciosa, e ri da própria brincadeira. Mas os pretendentes já foram embora.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página