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Pasquale Cipro Neto

Cá e lá...

Para quem não vai além da linguagem oral, muitas dessas construções parecem ser de língua estrangeira

Por motivos profissionais, fiz duas viagens a Portugal nas últimas quatro semanas. Nessas e nas tantas outras idas à sempre comovente terra de Camões o ouvido se acomodou paulatina e naturalmente aos falares lusitanos. É preciso algum treino (e boa vontade) para a rápida familiarização com as emissões lusas, muitas vezes bem diferentes das nossas.

Não é só a emissão de algumas palavras que exige algum treino ou cuidado. Os vocábulos de cá e de lá muitas vezes não são os mesmos. A nossa xícara é "chávena"; o ônibus vira "autocarro", e a parada ou o ponto do autocarro é "paragem". O sorvete é "gelado", e o palito de sorvete é "pau de gelado". O pedágio é "portagem", e o acostamento é "berma". Outra diferença: os portugueses não transformam a "berma" em faixa de rolamento...

Na língua do dia a dia, muitas vezes também são diferentes os pronomes e as flexões verbais. Não raro se ouvem e se leem formas cujo emprego, entre nós, já morreu há algum tempo, como "Férias que nunca esquecem" (= "Férias que nunca caem no esquecimento") ou "A vida sabe bem" (= "A vida tem gosto bom"). A primeira frase, que se referia aos Açores, estava num cartaz do Ministério do Turismo de Portugal; a segunda, numa peça publicitária (impressa) da Coca-Cola.

É claro que, para quem não vai além da linguagem do dia a dia, muitas dessas palavras e construções parecem ser de uma língua estrangeira; para os que têm bom conhecimento da língua, quando muito pode haver algum estranhamento com a audição ou a leitura de formas como as citadas, que, no Brasil de hoje, são pouco ou nada comuns. Esse bom conhecimento da língua pressupõe um arco linguístico bem amplo, o que certamente é fruto de muita leitura (dos modernos e dos clássicos --brasileiros, portugueses e africanos), sem preconceito contra NENHUM registro linguístico.

Também chama a atenção a semelhança no trato de alguns "calos" da língua. Um deles é o verbo "haver", cujo emprego atormenta brasileiros e lusos, letrados ou não. Tanto cá como lá são muito frequentes, na fala e na escrita, construções como "Houveram várias discussões entre..." ou "Naquela época ainda haviam pessoas interessadas em...". No padrão formal da língua, sobretudo na escrita, não se registra esse emprego do verbo "haver", que, como se sabe, é impessoal, isto é, não tem sujeito, por isso não sai da terceira pessoa do singular quando é empregado com o sentido de "existir", "ocorrer", "acontecer" etc.

Parece que tanto o falante brasileiro quanto o lusitano só reconhecem a impessoalidade do verbo "haver" no presente do indicativo ("Há várias discussões entre..." ou "Hoje ainda há pessoas interessadas em..."); nos demais tempos (do indicativo e do subjuntivo), esse verbo é visto e/ou sentido como pessoal, o que explica o seu constante emprego no plural em casos em que o padrão culto registra o singular.

Para muita gente, as diferenças que há entre o nosso português e o europeu bastam para a declaração de uma mais do que estúpida guerra entre as duas "línguas", apoiada numa insossa tese de que o que há por aqui já deixou de ser português. Devagar com o andor, moçadinha! Há diferenças, sim, mas daí para achar que isso vai além da caracterização de duas vertentes da mesma língua a distância é um tanto considerável. Quanto maior é a necessidade do emprego do padrão formal (um texto sobre direito, ciência ou língua, por exemplo), maior é a semelhança entre a vertente brasileira e a europeia; quanto maior é o envolvimento com um dos universos do dia a dia, maior é a probabilidade de algumas incompreensões e estranhamentos, de ambos os lados. É isso.


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