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Pasquale Cipro Neto

'Xifópagos'

Mal entrou no carro e me reconheceu, o policial me perguntou: "Qual é o coletivo de cobras, professor?"

Chego ao jornal, e, no estacionamento, um motorista da casa me aborda: "Professor, como é que se diz quando irmãos nascem grudados?". "Siameses", digo eu. "É outra palavra, professor. Qual é mesmo?" E eu: "Xifópagos". "Ah, então é isso?!"

Não resisti à tentação de pedir-lhe a razão da pergunta. O rapaz fez uma prova de português de um concurso para estudar confeitaria. Exigiram dos candidatos o conhecimento da importantíssima palavra "xifópago", que, ao pé da letra, significa "consolidado, unido como espadas". O elemento grego "xifo-" significa "espada"; o também grego "-pago" significa "unido", "consolidado".

Por que será que um examinador quer que futuros confeiteiros conheçam o termo "xifópago"? Deve ser porque há pães que saem do forno grudados, como irmãos siameses (ou "xifópagos", antes que me esqueça). Quanta bobagem, meu Deus!

Um confeiteiro precisa entender ou escrever uma receita, o que não é pouco, não. É comum ficarmos sem saber como se preparam determinados alimentos porque não entendemos o que diz a mal redigida receita.

É, caro Rubem Braga. Em 1951, escreveste a memorável crônica "Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim", em que falavas justamente da falta de sentido de perguntas como a feita ao nosso candidato a confeiteiro ou como as que citas já no título da crônica. Diz o grande Mestre: "Por que fazer do estudo da língua portuguesa uma série de alçapões e adivinhas, como essas histórias que uma pessoa conta para pegar' as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, cairei, caireta, cairota ou cairiri --e a única utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar um problema de palavras cruzadas".

É, caro Rubem, passaram-se 53 anos, mas nesse tempo muitas questões semelhantes foram feitas em provas e concursos. Certa vez, num concurso para oficial de Justiça, pediu-se o feminino de "peixe-boi". Claro! Todos sabemos que o peixe-boi é um malandro contumaz, incorrigível. Ao menor sinal da chegada do oficial de Justiça, dá no pé e larga a bomba na mão da dona peixa-vaca...

O feminino de "peixe-boi" não é "peixa-vaca", não, caro leitor; é "peixe-mulher", forma usada por pescadores brasileiros e angolanos, segundo o "Aulete". Ouvi dizer que a genitália do peixe-mulher é semelhante à da mulher, mas não fui até o fim na pesquisa sobre a origem desse termo.

Quer outra barbaridade? Há 10 ou 15 anos dei carona a um policial rodoviário. Assim que entrou no carro e me reconheceu, foi logo perguntando: "Qual é o coletivo de cobras, professor?". E eu: "Por que o senhor quer saber isso?". Pela cara que fez, supus que ele estivesse pensando que eu o estava cozinhando, ganhando um tempo para pensar na resposta. E ele: "Fiz um concurso interno na polícia e...". Não preciso concluir, preciso?

Sim, sim, policiais rodoviários que sabem o coletivo de cobras ganham tempo quando pedem socorro à central. Como sabemos, nossas rodovias são coalhadas de cobras, que põem em risco a segurança dos motoristas. Se o policial souber a palavra que nomeia isso, ganha tempo, já que é mais rápido dizer uma palavra do que uma locução. Há montes de cobras nas nossas rodovias, sim, caro leitor, mas elas são os nossos motoristas, de longe os mais irresponsáveis do planeta.

Perguntei ao policial se nas alternativas da questão havia "ofidiário" ou "serpentário", o que o fez pular no banco do carro. "Então é isso?", disse ele. "Não", respondi. Só na cabeça de um examinador desocupado pode surgir a (falsa) ideia de que o coletivo de cobras seja "serpentário" ou "ofidiário", palavras que designam o lugar em que se criam cobras para finalidades científicas.

Ainda há muitos examinadores que estão na idade da pedra. Saber uma língua é bem diferente de toda essa bobajada, caro leitor. É isso.


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