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Cotidiano

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Antonio Prata

No seio da família

Então quer dizer que tem um monte de homem por aí aparando os pelos e eu sem saber de nada?

Eu não queria jogar mais lenha na fogueira: muitas páginas, saliva e terabytes têm sido gastos com o clima de Fla-Flu que assola o país, mas é impossível me calar quando a cisão e a intolerância chegam ao seio da minha família --e "seio", como se verá, não está aqui no sentido figurado.

Por conta do aniversário do meu pai, no último fim de semana, fiz em casa um churrasco: a grelha crepitava, as cervejas tiniam, meus tios e tias riam das histórias de infância; nenhuma agressividade pairava sobre o almoço, como nenhuma nuvem manchava o azul do céu --até que eu tirei a camisa.

"Podia dar uma aparada, hein?", sugeriu meu tio Augusto. Na hora, não entendi. Olhei pra churrasqueira, pensando que "dar uma aparada" fosse gíria para cortar uns pedaços de carne, mas Augusto tirou também a camisa e mostrou o peito, orgulhoso: "Máquina dois, ó só que beleza". Do outro lado do quintal, meu tio Gilberto manifestou sua tonitruante indignação: "Tá maluco, Gugu?! Raspando o peito?!". "Aparando!", corrigiu Augusto, tentando apontar a nuance entre "raspar" e "aparar", mas o Fla-Flu já estava instaurado, e todas as nuances, perdidas: à direita (Flu), os pró-aparo; à esquerda (Fla), os defensores do peito orgânico.

Confesso que fiquei confuso --menos com a questão estética do que com meu atraso em perceber a mudança dos tempos. Então quer dizer que tem um monte de homem por aí aparando os pelos e eu sem saber de nada? Seria eu um ser anacrônico, cultivando no peito um tufo de atraso? Faria há anos minha mulher passar vergonha na praia, na frente das amigas, sofrendo em silêncio por conta de meu desleixo piloso? Seriam os pelos a nova pochete?

Meu pai, por sua vez, não se perdia em tais indagações. Fechou logo com o Gilberto, lembrando que na juventude dos dois, em Lins, homem não usava nem xampu e que ele já se achava avançado demais por passar "creme rinse". Minha irmã, pró-aparo, o acusou de, com aquela posição obtusa, negar todas as conquistas dos anos 60. Comparou-o aos que riram da sunga do Gabeira, na volta do exílio. Minha tia Beth, grande feminista, disse que não havia nada de "anos 60" em homem raspando o peito --"Aparando!", repetia tio Augusto, em vão--, ao contrário, era um modismo careta, igual ao das mulheres sem pelos púbicos, sintoma da nossa época pudica e desnaturada: em breve, ninguém mais faria sexo.

O debate, agora, já tinha desmoronado como uma Torre de Babel e se transformado em meia dúzia de discussões paralelas --ou transversais? "Como, de direita?! Índio não tem pelo! Negro também não!", "É verão, gente! É fresquinho!", "Mentira! Eu nunca fiz o pé!", "Preconceituosos são vocês!", "O Edgar pinta a barba, sim!", "Qual o problema da mulher botar silicone?", "Só a Claudia Ohana nos salva!"

Na semana seguinte, a discussão seguiu pela internet, os prós e os contras a poda desfiando seus argumentos, como se dos pelos dependesse o futuro da civilização. Eu, que ainda não cheguei a uma conclusão sobre essa questão cabeluda, disse que permaneceria neutro: rasparia só metade do peito. A piada acalmou os ânimos de todos. Ou quase, pois o Augusto me escreveu na sequência, furibundo: "Pelo amor de Deus, quantas vezes eu vou ter que dizer? Não é raspar, é aparar, cazzo!".


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