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Cotidiano

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Minha carroça, minha vida

Casal de catadores de material reciclável transforma veículo em morada nos Jardins, a uma quadra e meia da avenida Paulista, ao lado do parque Trianon

ROBERTO DE OLIVEIRA DE SÃO PAULO

Latinhas, latões, madeiras, cabos, fios e outras bugigangas compõem uma espécie de ferro-velho estacionado numa área nobre de São Paulo. Uma lona preta esconde a parte interna da carroça. Difícil acreditar, mas latidos denunciam: há vida ali dentro.

Nega, Negão e Pretinha, três cães sem raça definida, vivem na carroça --e eles não estão sozinhos. Os catadores de material reciclável Cacilda do Carmo, 57, e Marcos Gonzales, 46, são donos dos bichos e do carrinho "turbinado", este bem diferente dos que paulistanos estão acostumados a ver trafegar pela região do parque Trianon.

Na "casa" montada sobre rodas, guardam roupas, colchões, cobertores, escassos documentos, ferramentas e outras quinquilharias. Dormem e tomam banho (de balde) dentro dela.

Ainda na parte interna, o "banheiro" é improvisado à noite em saquinhos plásticos, depois dispensados no lixo.

O veículo está estacionado na rua, à esquerda de quem desce a Peixoto Gomide, ao lado do parque Trianon, a uma quadra e meia da Paulista, nos Jardins. Divide o espaço com carros e motos.

"Por aqui, todo mundo me conhece. Essa região é boa demais", diz Gonzales.

Às vezes, Cacilda organiza às pressas uma cozinha ali ao lado, mas, geralmente, os dois dividem uma marmitex.

MATRIZ E FILIAIS

Além da "carroça matriz", Gonzales mantém outros cinco carrinhos parados nos arredores da "casa-sede". Esses, sim, são utilizados para recolher a vasta oferta de material reciclável na região.

Antes das 5h, o casal está de pé. Os dois tomam um copo de café num boteco perto dali e saem para o trabalho.

Os três cães permanecem dentro da carroça, acorrentados. Há água e ração, doada por uma moradora da região.

"Eles precisam ficar amarrados, senão correm para rua e podem ser atropelados", justifica Cacilda. "Esse bichinhos são bem tratados. Não dou e não vendo por dinheiro algum", afirma Gonzales.

A rotina deles é incerta. Depende do que encontram pelo caminho. A venda de papelão e latinhas, por exemplo, é feita na região da rua 25 de Março, no centro. No fim da tarde, geralmente, o casal está de volta ao "lar".

Na madrugada da última terça, por volta das 2h, os dois iam dormir de estômago vazio. "Agora, não tem nada perto para comprar", disse Cacilda, enquanto Gonzales complementou: "Fazer o quê? Engole a fome e dorme".

O catador afirma que, além da venda de latinhas, fios, ferros e afins, ele e a mulher ajudam na montagem e desmontagem da feira de artesanato que ocorre nos fins de semana em frente ao Trianon.

Ao todo, calcula ganhar cerca de R$ 500 por mês --ele e a mulher são analfabetos. Cacilda diz não ter parentes; Gonzales afirma que ainda lhe restam três irmãos, que vivem no extremo da zona sul paulistana. Lembra que quase não tem contato com eles.

Marido e mulher nasceram e viveram parte da infância na periferia de São Paulo.

Nenhum dos dois sabe ao certo há quanto tempo vive nas ruas. Cacilda se recorda de pelo menos 20 anos. Gonzales lembra-se de que há ao menos 15 anos circula pela região da avenida Paulista.

A "casa-carroça" foi montada na Peixoto Gomide há ao menos dois meses, dizem.

"Eles tomaram o lugar como a casa deles", afirma a empresária Marta Cintra Leite, 70, que mora no prédio em frente. "E vão acumulando na calçada e na rua todo o material de refugo que eles encontram pelo bairro", diz.

Moradores, segundo ela, já acionaram a prefeitura, mas nenhuma ação foi tomada. "É uma questão séria de responsabilidade do poder público."

Em nota, a Subprefeitura Sé passou a bola para a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social. Esta, por sua vez, diz que Gonzales já foi abordado pela equipe da pasta nos últimos meses, mas sempre se nega a deixar seu "puxadinho" e ir para um abrigo público.

Ele próprio admite: "Não saio daqui por nada".

Para Antonio Carlos Franchini, presidente da Associação Paulista Viva, "situações degradantes perturbam o convívio social, e enfrentar os problemas urbanos é dever de uma sociedade que pretende ser justa".

Segundo a professora de inglês Ligia Iague, 57, que vive na região dos Jardins desde 1997, o prédio oferece água aos dois "vizinhos do Trianon". "Eles não incomodam ninguém, mas é claro que é muito desagradável essa situação na porta da sua casa."


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