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Oscar Vilhena Vieira
O direito e a guerra
Neste momento, o direito parece estar sendo um valoroso atalho para que a política se aproprie da crise
Em junho de 1932, antecipando a escalada de violência que desaguou na Segunda Guerra Mundial, Einstein endereça a Freud uma carta contendo a seguinte pergunta: "Existe alguma forma de livrar a humanidade da guerra?".
O velho bruxo de Viena demonstra, com certa ironia, sua surpresa pela pergunta tão pueril ter sido formulada por um dos maiores gênios da humanidade. Para responder à questão que lhe foi formulada, no entanto, Freud recorre à sua teoria dos instintos.
Dois seriam nossos instintos fundamentais: um responsável pela preservação e união e outro pela agressividade e destruição. Amor e ódio.
O problema é que esses instintos são indissociáveis e mutuamente dependentes. Sem um pouquinho de agressividade, não saímos da cama pela manhã. O que dizer então de constituir e proteger nossas famílias, competir no mercado de trabalho e, por fim, alcançar a paz?
A única alternativa para evitar que a agressividade encontre sua expressão na guerra seria contrapô-la por meio de tudo que favoreça o estreitamento de vínculos emocionais, assim como interesses comuns entre os homens, tais como a cultura, o comércio e também o direito. Esses mecanismos de agregação podem eventualmente desviar a agressividade de forma a que ela sirva a objetivos mais construtivos. É o que se chama de processo civilizatório. A violência, no entanto, sempre continuará latente, ao menos enquanto formos humanos.
Lembrei-me dessa velha correspondência, assim que as tropas russas iniciaram a ocupação da Crimeia, na semana passada. Afinal, pode o direito de fato contribuir para a paz? Mais do que isso, pode o direito internacional, que não tem muitos dentes, constranger um país tão poderoso quanto a Rússia? Ainda que seja difícil acreditar nisso é interessante notar o espaço da retórica jurídica nesse jogo.
Antes de mais nada é importante lembrar que o uso da violência nas relações internacionais foi proibido pela Carta da ONU de 1945, com apenas duas exceções: a legítima defesa ou nos casos em que o Conselho de Segurança autorize. Daí a reação imediata de Obama, de que a ocupação da Crimeia por forças russas constitui um ato de violação ao direito internacional. Mais do que isso, os russos, assim como os americanos e britânicos, estariam limitados por um tratado de 1994 a respeitar a soberania da Ucrânia. Logo uma dupla violação do direito internacional.
A tudo isso Putin também responde com argumentos de natureza jurídica. Primeiro que a Rússia não se encontraria obrigada pelo tratado de 1994, pois a revolução do mês passado teria criado um novo Estado. Apresenta ainda um documento produzido pelo parlamento da Crimeia, solicitando a intervenção russa para proteger a minoria de origem russa que vive na Ucrânia.
Não me importa aqui analisar se os argumentos são válidos, mas sim destacar o fato de que os dois homens mais poderosos do mundo sentem necessidade de revestir suas ações e intenções com justificativa legais. Puro cinismo? Talvez. Mútuo interesse? Provavelmente. O que importa, como nos alerta Freud, é que, em face da guerra, a violência seja desviada. Neste sentido, o direito parece estar sendo um valoroso atalho para que a política se aproprie da crise.