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Pasquale Cipro Neto

'Tapear', 'etapear', 'comorbidade'...

A chave de ouro desta semana vem do presidente da Infraero, Gustavo do Vale, que, ao tentar explicar...

Acho que já relatei aqui o que me disse um anestesista minutos antes de entrar para a sala de cirurgia em que um dos meus filhos seria operado. Salvo engano, o fato ocorreu em 1985. Perguntei-lhe o básico (que anestesia seria aplicada etc.). Depois de algumas explicações, ele concluiu: "Mas não se preocupe; seu filho é uma criança eutrófica".

Não lembro o que lhe respondi, mas disse-lhe algo que se apoiava na compreensão do que ele quis dizer com "criança eutrófica". Imediatamente ele retrucou: "Você é colega?". "Não", disse eu; "sou professor de português e, por força do ofício, conheço um pouco de grego e latim".

O fato é que a tal criança "eutrófica" é uma criança bem desenvolvida, bem nutrida, forte etc. Em "eutrófico/a" temos o elemento grego "eu-" ("bem", "bom"), o mesmo de "eufônico" ("que soa bem"), e o também grego "-trofia" ("nutrição", "desenvolvimento", "alimentação").

Mas o que de fato conta é isto: o anestesista agiu bem quando me disse que meu filho era "uma criança eutrófica"? Essa linguagem é adequada? Que acha disso, caro leitor?

Nesta semana, no quesito "linguagem fechada", tivemos um caso bem interessante. Em pronunciamento exibido durante o "SPTV 2ª Edição" da última terça-feira, o secretário da Saúde da cidade de São Paulo, José de Filippi Júnior, disse estas palavras: "...se não estava associado a alguma outra comorbidade...". Entendeu, caro leitor? Sabe dizer de bate-pronto o que é "comorbidade"? E, por sinal, saberia como grafar esse mostrengo?

Repito a pergunta que fiz no fim do quarto parágrafo: essa linguagem é adequada? Que acha disso, caro leitor? Bem, antes que alguém pergunte, o "Houaiss" define "morbidade" como "conjunto de causas capazes de produzir uma doença", "incidência relativa de uma doença". O prefixo "co-" de "comorbidade" é o mesmo de "copiloto" e, como se sabe, indica ideia de união, junção etc.

Peço licença ao grande Elio Gaspari para dizer que Madame Natasha supõe que o secretário da Saúde paulistano quis dizer que pode haver alguma associação (falava-se de um caso de dengue) de causas, ou seja, que, além da dengue... Bem, não preciso concluir, certo, caro leitor?

É de ressaltar que o prefixo "co-" é um tanto incompatível com a expressão "alguma outra" ("associado a alguma outra comorbidade") já que, se existe "comorbidade", existe outra "morbidade" além da que está em discussão. Parece que teria sido bem melhor ir direto ao ponto, com linguagem clara, não específica, sobretudo por se tratar de uma entrevista a uma emissora de TV.

A chave de ouro desta semana vem do presidente da Infraero, Gustavo do Vale, que, ao tentar explicar o inexplicável (a quizumba em que está boa parte dos nossos aeroportos), usou a palavra "tapear" nesta passagem: "Nós podemos tapear as obras de modo que você melhore a operacionalidade...". No dia seguinte, a Infraero publicou uma nota em que informa que Vale disse "tapear" no lugar de "etapear", palavra que os nossos dicionários ainda não registram. A nota afirma que Rogério Magri, ou melhor, Gustavo Vale quis dizer que é possível fazer as obras em etapas, o que, de certa forma, condiz com o que ele dissera antes ("...o aeroporto não tem essa questão da obra terminar e não se fazer mais nada; isso é uma coisa constante...").

Entendi. Divide-se a obra em etapas (inumeráveis, de acordo com a lógica do discurso do presidente da Infaero) e espera-se pelo fim do mundo, que chegará antes do fim das obras nos aeroportos, que, como se viu, nunca terão fim. Haja palavreado para disfarçar o indisfarçável. É isso.


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