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Pasquale Cipro Neto

'O inferno são os outros'

Não se trata de discutir o que é certo ou errado, mas de levar em conta o que se quer pôr em evidência

Dia desses, um leitor perguntou se está correta a concordância do verbo "ser" na frase que dá título a este texto. A sentença, que é do filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), tem sido usada com um sentido talvez ampliado em relação ao que tem na obra do célebre escritor. Em poucas palavras, a frase diz que nossas dificuldades e limitações sempre advêm do que os outros nos impõem.

Em se tratando da concordância do verbo "ser", convém lembrar que, embora no registro culto predomine a flexão no plural, em casos análogos ao da frase de Sartre, ocorre também a flexão do verbo no singular, visto que, na verdade, a opção por uma ou outra forma é guiada pelo que se quer enfatizar.

(Re)Lembro estes versos de Fernando Pessoa (que citei neste espaço há quase cinco anos): "E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas / Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso". A palavra "andas", no caso, é plural de "anda", que significa "perna de pau" (não o indivíduo, mas a própria peça de madeira).

O caro leitor certamente notou que Pessoa pôs no singular o verbo "ser" na dupla metáfora contida em "O teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas...". O grande poeta poderia ter posto o verbo "ser" no plural, com o qual enfatizaria "as escadas" e "as andas", com as quais o eu lírico se finge "mais alto e ao pé de qualquer paraíso". Ao optar pelo singular ("E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas..."), o poeta enfatiza "o teu sorriso no teu silêncio", que, como se vê e se sente, é tudo, mais do que tudo.

Na frase de Sartre, o plural ("são") põe em evidência "os outros", e não "o inferno", o que, dado o sentido da sentença, parece mais do que cabível, afinal, se o inferno não sou eu, mas os outros, nada mais justificável, pelo texto e pelo contexto, que se opte pelo plural.

Moral da história: o caro leitor já deve ter percebido que não se trata de discutir o que é certo ou o que é errado, mas de levar em conta o que se quer pôr em evidência.

Quanto à frase em si, ela vem a calhar em relação ao episódio Suárez e seu lado "canibal". Como sempre faço diariamente, li ontem vários jornais de vários cantos do planeta. Fiz até a bobagem de ler os comentários de "sábios" que "julgam" o que leem, o que pensam os outros etc. e, brasileiros ou não, quase sempre discutem o que não é essencial.

Um "comentário" presente em órgãos de vários países (Uruguai e Itália incluídos) não se referia à atitude de Suárez, mas ao histórico de Giorgio Chiellini, o mordido. Um bem-humorado leitor de um jornal italiano chegou a dizer que o caso não deveria merecer tanto destaque, que só se justificaria se "o homem tivesse mordido o cachorro".

De fato, o delicado zagueiro italiano não é flor que se cheire, mas o que isso tem que ver com a história? O que se deveria e se deve discutir é a atitude de Suárez, não? Ah, sim, o inferno são (sempre) os outros...

Sabe aquela história de achar que a culpada pelo estupro é a mulher estuprada? É mais ou menos isso.

O inferno são os outros? Nem sempre. O lendário uruguaio Alcides Ghiggia disse com todas as letras que o que Suárez fez é absurdo. Ufa! Há sempre uma esperança. É isso.


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