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Pasquale Cipro Neto

Perdemos "acintosamente"?

Será que com "perdeu acintosamente" as pessoas pretendiam dizer que a derrota foi intencional?

Sim, o jogo já foi, a estrepitosa goleada ainda arde, a incredulidade continua estampada na face de muita gente. No rádio e na TV, em artigos publicados em jornais e sites, em comentários nas "redes sociais" (quanta bobagem, meu Deus!) etc., ainda se tenta explicar a histórica hecatombe.

Em muitos desses pronunciamentos, li as palavras "acintoso" e "acintosamente", às vezes mal grafadas (com "ss" ou "sc"). Cito um exemplo: "O interessante é que ninguém do ramo esportivo disse que o Brasil iria perder acintosamente se jogar da forma que jogou". Além da equivocada correlação verbal ("iria perder" não combina com "se jogar"), o trecho contém a forma "assintosamente", que, além de mal grafada, constitui caso de impropriedade vocabular.

E o que é "impropriedade vocabular"? Vejamos isso com um exemplo concreto: "Seu projeto político vem de encontro aos meus interesses, por isso vou votar nele". Só faltou a assinatura da mensagem: "Masoquista".

Só quem gosta de sofrer é capaz de votar em alguém que apresente projeto que vá "de encontro" aos seus interesses. "De encontro a" indica oposição, desacordo, colisão, por isso o seu uso é impróprio nesse caso. A expressão apropriada é "ao encontro de" ("Seu projeto político vem ao encontro dos meus interesses, por isso vou votar nele"). "De encontro a" caberia se houvesse um "não" junto à locução verbal "vou votar" ("Seu projeto político vem de encontro aos meus interesses, por isso não vou votar nele").

O uso de "onde" como verdadeiro cola-tudo é algo que talvez vá além da impropriedade vocabular e chegue ao plano da morfossintaxe, como se vê em "A derrota para a Alemanha deixou frustrados e irados muitos torcedores, onde ocorreram vários atos de vandalismo". O emissor queria dizer que a derrota deixou frustrados e irados muitos torcedores e que isso (a frustação e a ira) foi a causa de vários atos de vandalismo.

Como esse emissor relacionou os fatos? Com a palavra "onde", impropriamente empregada com o sentido de "razão pela qual" ("...deixou frustrados e irados muitos torcedores, razão pela qual ocorreram...").

Outro conhecido exemplo de impropriedade vocabular consiste em empregar a palavra "pródigo" com o falso sentido de "bom", "arrependido". O "filho pródigo" não volta para casa porque é bom ou porque se arrepende. O "filho pródigo" volta justamente porque é "pródigo", ou seja, "esbanjador", "gastador". Como fica sem um tostão, o jeito é voltar para casa (para a casa dos pais, no caso).

Voltemos ao título desta coluna. Será que a derrota foi "acintosa", que perdemos "acintosamente"? Sobre "acintoso" o "Houaiss" diz isto: "1. em que há ou envolve acinte; 2. mal-intencionado; malévolo; 3. que causa aborrecimentos; apoquentador, teimoso, pertinaz". O "Aulete" define "acinte" como "ação, gesto, fala, texto etc. intencionalmente feitos com o objetivo de ofender, provocar ou contrariar alguém, PROVOCAÇÃO". O dicionário "Priberam" (português) diz que "acinte" é "modo de fazer propositadamente o que pode ser molesto ou desagradável a outrem".

Parece que com "derrota acintosa" ou "perdeu acintosamente" as pessoas não queriam dizer que o Brasil perdeu intencionalmente. Creio que queriam dizer que a derrota foi escancarada, sem dar margem a nenhuma contestação ou sabe-se lá o quê.

Bem, se não foi acintosa, a derrota foi dura, inquestionável, e deveria servir de lição. Servirá? Lembro o texto de 12/6 ("Coração do Mundo"), no qual comentei a nossa incapacidade de lidar com a derrota e/ou de admitir a sua possibilidade. Vale a pena reler o trecho de Drummond que citei naquela coluna. Também vale a pena refletir sobre a frase estampada no ônibus da seleção. Quem ganha na véspera quase nunca vence no verdadeiro dia do embate. É isso.


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