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Cotidiano

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Tati Bernardi

Viajar é impreciso

Queria ser aventureira, entregue ao mundo, mas, para o meu desespero, só consigo ser eu mesma

Escrevo de um antigo convento de freis em Belmonte, fundado pela família Cabral. Tirei uma foto apontando pra estátua de Pedro Álvares ao estilo "esse é o cara", mas jamais direi isso a alguém. Meu quarto é o "São Francisco" e na recepção me explicam que vou dormir abençoada por um teto com mais de 500 anos. Rolou uma claustrofobia. Estou procurando aldeias históricas para o meu próximo longa (ia escrever filme, mas "longa" faz parecer importante) e diariamente visito muralhas, ruas e casinhas com vovozinhos de boinas. É tudo de pedra, mas o coração fica molinho de emoção (ou de tristeza: quando o castelo vende chaveiros com réplicas de azulejos, voltamos pra realidade).

São momentos muito especiais mas, escondidas lá no fundo de meu deslumbramento, algumas perguntas martelam: cadê o sinal da internet? Onde tem uma lojinha? Existe um bom hospital por perto? Posto no Face ou tô muito ridícula? Gambas é camarão ou é gambá, pelo amor de Deus?

Queria ser aventureira, entregue ao mundo, uma jovem mochileira, uma aluna de história com papete de couro e fortes opiniões políticas. Mas, para o meu grande desespero, só consigo ser eu mesma. O tipo de pessoa tadinha que espera, ansiosa, dar um pulinho no El Corte Inglês ou no Bairro Alto pra adquirir, com alegria catatônica, muitos itens que não quer. O tipo de pessoa tadinha que passa álcool gel em todas as privadas não importando cor, credo, estrelas em guias ou estilo de descarga.

Carrego sempre comigo: cristais de gengibre para frear o início de uma possível amigdalite; sal para pressão e chocolate pra hipoglicemia; um budinha sorridente que sempre faz comigo viagens internacionais (e que representa uma infantil intenção de evoluir); Dramin caso eu precise enfrentar estradas que, porventura, tenham curvas extremas; uma cartela de Rivotril caso a coisa aperte; outra cartela de Rivotril caso eu seja sequestrada e precise de reforços; Dramin B6 caso eu ande numa estrada que porventura tenha curvas, mas eu tenha que me manter acordada dizendo algo inteligente; bloqueador solar pra não ficar novamente com mancha no bigode (ainda mais em Portugal -sorry, piada ruim e muito revisitada), lenços higiênicos (vulgo bidê da vida moderna) e Vonau só pra dar uma variada nos variados de Dramin, caso estrada sinuosa e sequestro ocorram simultaneamente e/ou o Rivotril acabe.

No avião vindo pra cá descobri finalmente do que tenho medo. Não é de ele cair, não é (só) do ebola, não é do penne molengo com as beiradas fritas da opção "veggie" da econômica. Não é (apenas) dos males da má circulação ou do som supersônico da privada maligna. É da suruba. Andar de avião é dormir com centenas de pessoas numa única noite. E acordar sem graça, evitando encará-las, com nojo tímido das mantas e travesseiros espalhados.

Dói minha cabeça. Pode misturar Dorflex com Dramin com Omeprazol? E tudo isso com vinho verde? Existe afinal convento de frei? Eu chamo de vilarejos históricos ou aldeias medievais? Eu sou muito caipira ou extremamente urbana? É de monte belo ou de monte bélico? Meu psiquiatra tem Facetime? A internet caiu e sem Google fica puxado. Amanhã vou procurar cemitérios (porque tem uma cena de enterro no meu filme) com um motorista local que, na verdade, é um ator frustrado e estudioso da energia piramidal. Ele dorme dentro de uma pirâmide em sua casa. E ele leva, nas viagens, apenas uma camisa, mas três opções de relógios. Apesar da saudade do colinho acolchoado da rotina e da dor das infinitas manias, gosto imenso de viajar.


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