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Pasquale Cipro Neto

'Caberá só a mim esquecer...'

Xô, bobajada! Essa questão não se resolve pela posição do pronome, mas pela função dele

Eu estava chegando ao jornal. No rádio do carro, começou uma daquelas canções que não consigo deixar de ouvir até o fim. Os inconfundíveis acordes iniciais me informavam que Lulu Santos cantaria "Eu gosto tanto de você que até prefiro esconder..." ("Apenas Mais Uma de Amor").

Tudo na canção é comovente: o arranjo, a voz de Lulu, a melodia, a sensibilidade dos versos. O cuidado com a língua não fica atrás, como se vê neste passo: "Se amanhã não for nada disso, caberá só a mim esquecer".

Atire a primeira pedra quem nunca ouviu algo como "Antes de verbo não se usa mim" ou "Antes de verbo sempre se usa eu" ou ainda "Não existe para mim fazer" etc.

O caro leitor certamente já percebeu que o foco está na passagem "Caberá só a mim esquecer". A julgar pelo que se ouve por aí, essa passagem conteria um "erro", já que há nela se vê o pronome "mim" antes de um verbo no infinitivo ("esquecer"). Por essa "tese", teríamos de imaginar Lulu Santos a cantar a seguinte bobagem: "Caberá só a eu esquecer".

Xô, bobajada! A questão não se resolve pela posição do pronome, mas pela função dele. Uma frase como "É uma honra para mim estar aqui", por exemplo, é perfeitamente adequada ao padrão culto, visto que nela o pronome "mim" não se liga ao verbo "estar", mas ao substantivo "honra", o que se percebe facilmente com a mudança na ordem dos termos ("Estar aqui é uma honra para mim").

Em situação formal, alguém diria "Estar aqui é uma honra para eu"? Certamente não. Pois na frase "original" ("É uma honra para mim estar aqui"), o pronome é mesmo "mim" (e não "eu"), e pela mesma razão: a relação dele é com o substantivo "honra" ("honra para alguém"), e não com a forma verbal "estar".

Esse fato explica também por que uma frase como "É uma honra para eles receber a condecoração" é correta, visto que nela o pronome "eles" não se liga a "receber", mas a "honra", ou seja, o pronome "eles" não é sujeito de "receber"; é complemento de "honra". Novamente, basta trocar a ordem: "Receber a condecoração é uma honra para eles". Alguém trocaria "receber" por "receberem"?

Agora, uma pergunta venenosa. Como você preencheria a lacuna de "É fundamental para __ comparecer à solenidade"? Poria "mim" ou "eu"? Se você se baseou no que viu até aqui, respondeu "mim" --e acertou, já que é perfeitamente possível pensar em algo como "Comparecer à solenidade é fundamental para mim".

E onde é que está o veneno, então? Está em que, na verdade, a resposta não é nem "mim" nem "eu"; é "depende". E depende do quê? Do contexto. Imagine isto: converso com alguém sobre a conveniência de comparecer a uma solenidade. Digo ao meu interlocutor que isso se deve ao fato de eu ainda não ter recebido o convite formal. Aí ele me pergunta, curto e grosso: "Mas é necessário um convite?". E eu: "É mais do que necessário. É fundamental para eu comparecer à solenidade". Agora, o pronome cabível é mesmo "eu", já que o que se tem, na verdade, é a seguinte estrutura: "O convite é fundamental para eu comparecer à solenidade" (que equivale a "O convite é fundamental para que eu compareça...").

Moral da história: devagar com o andor. A gramática não é nada sem o contexto. E voltemos aos belos versos de "Apenas Mais Uma de Amor": "Se amanhã não for nada disso, caberá só a mim esquecer". Sim, caberá a mim; a mim, e não "a eu", já que a tarefa (a sempre árdua tarefa) de esquecer caberá só a mim. É isso.


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