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Luís Francisco Carvalho Filho

Pisando em brasas

Foi no período medieval que a instituição do juízo divino passou a ser combatida pela igreja

Notícias desidratam antes de publicadas. Discretamente, a Folha registrou (Mercado, 28/9) que uma distribuidora de medicamentos foi condenada a pagar indenização de R$ 50 mil a um vendedor obrigado a caminhar descalço por um corredor de carvão em brasas, em treino motivacional, sendo que os de pior desempenho nas vendas teriam, ainda, que dançar a (infame) "Eguinha pocotó".

Sem pretensão de ser ombudsman por um dia, informação tão lacônica, de inegável interesse, decorre provavelmente do processo fratricida que nas Redações elege e corta o que sai no espaço reduzido dos jornais. A nota não responde perguntas essenciais do jornalismo: o quê, quem, quando, como e por quê.

Verifica-se na internet que a decisão é do Tribunal Superior do Trabalho, entre outros detalhes do inusitado precedente judicial. Um vídeo confirmaria o uso assustador e surpreendente de fogo na passarela, mas o noticiário não mata curiosidades: os funcionários foram de fato obrigados a caminhar sobre brasas, como o protagonista da aventura cômica "Brancaleone nas Cruzadas" (direção de Mario Monicelli, 1970), vivido por Vittorio Gassman? Qual a extensão das inevitáveis queimaduras? Ou a estupidez motivacional teve caráter, digamos, mais próximo da simbologia? E como se deu a adesão das vítimas?

A empresa alega que o treinamento era "voluntário" e que o episódio não teve a "dramaticidade" do relato feito anos depois pelo vendedor, que permaneceu no emprego. De qualquer forma, a perigosa mistura de ritual primitivo e reality show foi considerada humilhante pelo Judiciário: empregador não pode submeter empregado a situações que "remetem às trevas medievais".

Caminhar sobre brasas é resquício do juízo divino, "judicium dei": a culpa ou a inocência se define pelo resultado de um desafio. O duelo é o exemplo mais persistente da crença de que Deus protege quem tem razão.

Também chamado "ordália", o juízo divino estava presente nas mais remotas leis da humanidade, assim como o princípio de talião (olho por olho, dente por dente).

Na Babilônia, o Código de Hamurabi (1792-1750 a.C.) previa que o acusado de bruxaria fosse lançado ao rio: se sobrevivesse à força da correnteza, era inocente, e o acusador, condenado à morte. Conforme o Livro dos Números do Antigo Testamento, a mulher suspeita de adultério, sem prova direta da traição, bebe "águas amargosíssimas": se não está "manchada", não sofre mal algum e pode ter filhos.

Foi justamente no período medieval que a instituição do juízo divino passou a ser combatida pela Igreja Católica --responsável, apesar do obscurantismo que historicamente cerca seus mandamentos e suas providências, pela racionalização jurídica da identificação da culpa.

Paulatinamente, a justiça privada dá lugar à intermediação equidistante do Estado. A força da palavra (réu, vítima e testemunhas) e as evidências materiais do delito passam a dominar a anatomia de um inquérito escrito, regrado. Até mesmo o uso oficial e burocrático do tormento para alcançar a confissão e a verdade, método de investigação hoje repugnante, é evolucionário diante da solução divina pelo desafio da água ou do fogo.

Pisar em brasas desapareceu dos códigos, não do imaginário.


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