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Marcos Augusto Gonçalves

O Som ao Redor

Aproveito essa São Paulo ainda calma para ir ao cinema e me surpreender com um filme brasileiro

São Paulo vazia é uma bênção. Meia dúzia de carros nas ruas, escolas fechadas, lugares sem filas e esperas. Se as chuvas não provocam desastres, tudo bem -as temperaturas caem e dias de verão ganham ares outonais. Aparece uma metrópole intimista, de bairro, num breve show acústico. Não demora e o heavy metal nosso de cada dia estará de volta.

Aproveito a calmaria para fazer uma coisa ousada: sair de casa e ir ao cinema ver um filme brasileiro.

Confirmando que "neguinho só quer saber de ver filme em shopping" (como recanta Gal), fui ao Villa-Lobos. Os Cinemarks, com aquele esquema de check-in de aeroporto, me deixam meio sem jeito. Mas vamos lá. A moça pede para eu escolher os assentos na tela à minha frente. Distraído, aperto os números com o indicador. Nada. Aperto de novo. Nada. "Senhor, não é touchscreen; diga os números para mim". Hã.

As primeiras imagens de "O Som ao Redor" são registros fotográficos em preto e branco da vida num engenho de açúcar pernambucano. De repente corta para um plano-se-

quência, a câmera em movimento, baixa, acompanhando um garoto puxando uma menina de skate. Os dois seguem para o playground de um prédio de classe média em Recife. Empregadas, crianças, ruídos.

O registro realista e as interpretações naturalistas despertam dúvidas, mas logo se vê (e se ouve) que não estamos diante de um filme comum.

Os receios quanto a uma incursão sociológica aborrecida e maniqueísta em torno de nossa herança escravocrata se dissipam. Não que o filme de Kleber Mendonça Filho nada tenha a ver com isso. Tem e trata do assunto. O que interessa, porém, é como trata. E é isso, afinal, que faz um filme ser um filme.

O diretor seguiu radicalmente a fórmula de Tolstoi: "Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia". Mendonça começou por sua rua. Literalmente.

Uma narrativa multifacetada nos aproxima pouco a pouco da cena doméstica de personagens da classe média urbana e da elite rural decadente, em meio ao tráfego incessante de pobres, negros, serviçais, que se ocupam de tarefas subalternas. Há grades por todos os lados. Vigias se instalam na rua. Tensão no ar. A qualquer momento alguma coisa arrebenta.

O filme, entretanto, não vai para o confronto fácil do bem contra o mal, da elite egoísta e malvada contra a senzala sofredora e virtuosa. Sua sociologia é também a do açúcar -ecoa Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. E isso permite uma aproximação mais rica das tensões da sociabilidade brasileira, na qual a informalidade predomina e a doçura contracena com a violência.

"O Som ao Redor" convence como cinema. O diretor vai sem pressa, com mão firme, ironia e inteligência. Sabe onde quer chegar. Apesar da superfície naturalista, estamos vendo o filme ser feito na nossa frente, numa engenharia quase cabralina. E a perturbadora trilha sonora, se houver dúvida, não nos deixa esquecer de que há alguém contando uma história. Contando bem, de maneira inusual na nossa filmografia recente -depois de "Cidade de Deus", diria.

Lembrei-me de Lucrecia Martel e do cinema argentino. Aliás, sugestivamente, há uma divertida passagem no filme com um garotão "hermano", que não consegue achar o caminho de volta para a festa.

Ok. Neguinho às vezes sabe fazer filme.


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