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Tragédia no sul

Funcionária da boate, legista e médico detalham tragédia

Pessoas envolvidas no incêndio no RS relembram o dia do acidente

FELIPE BÄCHTOLD REYNALDO TUROLLO JR. ENVIADOS ESPECIAIS A SANTA MARIA MELINA GUTERRES COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM SANTA MARIA

No final da noite do sábado passado, eles estavam em diferentes pontos de Santa Maria. Horas depois, já na madrugada de domingo, cruzaram-se em algum momento no incêndio e no resgate das vítimas da boate Kiss.

À Folha a legista Maria Angela Zucchetto, 53, a caixa da boate Bruna Claussen, 19, o médico plantonista do Samu Pedro Dalmaso, 32, e a dentista Gislaine Madeira, que não declara a idade, narraram detalhes daquele dia.

Além das investigações da polícia, esses quatro depoimentos ajudam a reconstituir os detalhes da tragédia.

INÍCIO DA MADRUGADA

Assim como fazia desde o final de 2011, Bruna Claussen carimba uma a uma as comandas dos convidados de mais uma festa de universitários na Kiss. Ela é a responsável por esse controle, e sempre tem em mãos dez blocos, com cem comandas cada.

Às 2h45, conversa com um gerente da casa. Estimam algo em torno de 800 os presentes até aquele momento -a capacidade autorizada pelos bombeiros era de 691.

Enquanto isso, num dos palcos da boate, a banda Gurizada Fandangueira segue sua apresentação, até que, pouco após as 3h, o vocalista ergue uma espécie de sinalizador, comprado por R$ 2,50 e de uso exclusivo em ambientes externos.

Faíscas em contato com o teto dão início ao fogo na espuma para isolamento acústico instalada sem autorização da prefeitura e nunca inspecionada pelos bombeiros.

As chamas aumentam. O vocalista tenta contê-la com um copo de água. Depois tenta usar um extintor. Nada.

O fogo se espalha rapidamente, começa um corre-corre e a boate Kiss é tomada por uma fumaça densa, escura e altamente tóxica.

Bruna sai de perto dos caixas, corre pela boate e tropeça na porta que dá acesso ao hall de entrada.

Não se levanta. Agarrada às pernas de um amigo, segue rastejando até alcançar a calçada. "O DJ Bolinha estava na minha frente. Quando vi que ia ser puxada, segurei nas pernas dele. Durou mais ou menos uns três minutos."

Os três minutos de apuros para Bruna foram o intervalo até soar a sirene no quartel dos bombeiros e tocar o telefone do Samu, interrompendo 52 horas sem chamadas de emergência por lá.

O plantonista Pedro Dalmaso integra a primeira equipe de socorro a chegar ao local do incêndio.

PRIMEIROS SOCORROS

Enquanto os bombeiros e alguns civis quebram paredes a marretadas e entram e saem da boate mesmo com toda aquela fumaça, a legista Maria Zucchetto é acordada por volta das 4h com o telefonema de um colega.

"Prepare-se. Tem um incêndio na Kiss e parece que são uns 30 cadáveres".

Ela nunca havia trabalhado numa ocorrência com mais de cinco mortos. Chega a pensar que era exagero. Não era.

Damasio, o médico do Samu, já completa ao menos uma hora de corrida contra o tempo para salvar feridos -precisou colocar cinco na mesma ambulância- quando o barulho incessante das sirenes acorda e assusta a dentista Gislaine Madeira.

Sem saber o que ocorre, ela parte sem dinheiro e sem celular rumo ao Hospital de Caridade. Queria ajudar.

Na boate, o esforço dos jovens com marretas parece sem rumo e sem fim.

Um dos sócios da casa, Elissandro Sphor, o Kiko, passa na frente de Bruna.

"Foi ele que iniciou tudo: 'Quebra a parede, quebra aqui'. Acho que ele sabia o lugar certo, não sei. Quando olhei, tinha três pessoas segurando ele, porque ele queria voltar [para dentro]."

Os carros da Samu mal dão conta nesse vaivém.

"Depois da primeira viagem [de ambulância], consegui visualizar a situação nítida de que o número de mortos seria de mais de cem pessoas", lembra Dalmaso.

AMANHECER

As dezenas de mortos não caberiam no IML da cidade. São levados de caminhão a um complexo esportivo, onde dois ginásios são improvisados para os legistas.

No caminho, Maria Angela recebe a ligação de uma perita: "São 50 corpos". Minutos depois, novo telefonema, de uma delegada: "São 100".

A chefe dos legistas já havia convocado toda a equipe de Santa Maria, além de profissionais de outras cidades.

Entra no ginásio e dá início ao trabalho incessante de recolher amostras para exames e ajudar na identificação de cada uma das vítimas.

"Era chocante, cadáver para lá, para cá, três ou quatro filas. Tenho certeza que o pessoal se chocou. Mas pensava: 'Não posso me dar esse direito, tenho que trabalhar'."

Enquanto isso, parentes percorrem os hospitais, na esperança de achar os filhos vivos. O principal ponto de peregrinação é o Hospital de Caridade, para onde a maior parte das vítimas foi levada.

A dentista Gislaine chega ali com a primeira leva de feridos. O caos estava instaurado. Antes, ligou para o filho, para garantir que estava vivo.

Resolve então assumir uma delicada missão: ajudar a identificar os feridos.

Como muitos estavam inconscientes, ela anota características dos feridos para descrevê-los do lado de fora do hospital, onde familiares aguardam notícias. Piercings, tatuagens e até correntinhas são anunciados aos gritos ao lado de soldados da Brigada Militar, a PM gaúcha, que tentam organizar a multidão. Consegue identificar dezenas de sobreviventes.

FIM DE UM LONGO DIA

Ao final daquele dia, Bruna conta "mais de 30 amigos" mortos. Antes de voltar pra casa, passa no hospital, faz exames no pulmão e é liberada.

Maria Angela e sua equipe identificam 231 corpos -até ontem, o saldo era de 237 mortos. Ela só para após 20 horas seguidas de trabalho.

Dalmaso já tinha ido e voltado a Porto Alegre de helicóptero levando feridos e fica perturbado ao encontrar um colega em busca do filho, que acabou morrendo.

Gislaine pode ter sido a primeira entre milhares de moradores que prestaram ajuda. "Fui apenas mais uma."


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