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Equilibrio

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Ninguém se fala, ninguém se olha ou se toca

Limpava-se o banheiro compulsivamente; Os dias duram muito quando não se pode falar, assistir TV ou passear na internet

DA ENVIADA A MIGUEL PEREIRA (RJ)

A decretação do fim do "nobre silêncio", no último dia do Curso de Meditação Vipassana, encheu de blá-blá-blá, sorrisos e histórias as instalações sóbrias do retiro.

Logo se soube que o sapo do banheiro, um anfíbio safado que parecia se divertir assustando as moças que iam tomar uma ducha, foi removido de lá corajosamente pela meditadora Claudete Sarapu, professora de Santo André. Ela o pegou usando um pano de chão como luva.

Ou que a consultora de sustentabilidade Gabrielle Lopez, 26, uma experiente frequentadora de retiros (já fez em Bali e na Costa Rica), a partir do sétimo dia não conseguiu mais acompanhar as meditações, o pensamento vagando disperso. "E por que você ficou?", quis saber a reportagem. "Tinha esperança de que melhorasse", afirmou.

O "nobre silêncio" não se limita a um "cala a boca". Significa "abster-se totalmente da comunicação com outros, verbal ou física, mesmo que por intermédio de gestos ou olhares", em busca do "silêncio mental". Pesa.

Durante toda a vigência desse silêncio em sentido amplo, ninguém sorriu para ninguém. Acabou também a gentileza, que exige interação entre viventes.

Noite fechada, sem luz (a chuvarada havia derrubado a rede elétrica), quem tinha lanterna fez facilmente o percurso entre os dormitórios e a sala de meditação. A quem não tinha, restou torcer para não pisar em uma cobra. Ninguém ofereceu ou pediu carona no facho de luz.

A mesma coisa aconteceu com os portadores de guarda-chuvas. Quem tinha, tinha. Quem não tinha, tivesse. Muitos chegaram à meditação pingando.

Nada favorecia a interação. No refeitório, as pessoas sentavam-se como se fosse em bancos de igreja. Todos voltados para o mesmo lado, de modo que ninguém se encarasse.

Mas o "nobre silêncio" acabou também com a histeria coletiva. Incrivelmente, a aparição de baratas, escorpiões, sapos e cobras não ocasionou um tsunami de gritos.

Na verdade, nenhum grito se ouviu, nem mesmo quando uma barata cismou de voar sobre as meditadoras concentradíssimas. Seria esse o caminho da iluminação?

Em absoluto silêncio, uma jovem levantou-se calmamente e pegou o chamado "kit salva inseto", que consiste em uma vasilha de plástico transparente e uma cartolina.

A vasilha, emborcada, imobilizou a barata, impedindo-lhe a fuga. Então, a cartolina foi enfiada por baixo. E levou-se a barata aprisionada para um matinho, onde ela foi de novo libertada.

Fiel ao princípio budista de respeito a todos os seres, ali não se matam animais -nem os peçonhentos.

Entre as mulheres houve aquelas que, exasperadas pela disciplina rígida, levaram ao extremo o que era possível. Já que era possível lavar roupas, lavava-se roupas todos os minutos de descanso. Esfrega aqui, torce ali, pendura no varal. E de novo, de novo.

Também podia-se limpar o banheiro, então limpava-se o banheiro compulsivamente. Ou varria-se o quarto. E a varanda. Os dias duram muito -demais- quando não se pode falar, assistir à televisão ou passear na internet.

O professor Goenka prometeu em várias de suas palestras (sempre ministradas à noite) que o final do curso viria acompanhado por semblantes felizes, típicos de pessoas maravilhadas com as possibilidades abertas pelos ensinamentos recém-adquiridos.

De fato, no final, mesmo todos sendo obrigados a fazer uma última faxina nas instalações, os semblantes estavam exultantes. Havia felicidade no ar.


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