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Sul-africano cativava diante de 20 pessoas ou de 40 mil

Nonagenário e caminhando com dificuldade, Mandela ofuscava outros líderes

FÁBIO ZANINI EDITOR DE "MUNDO"

Em seus últimos anos de vida, Nelson Mandela quis aproveitar ao máximo o direito, conquistado após 27 anos na prisão, de caminhar com as próprias pernas.

O homem que venceu o apartheid e foi canonizado ainda em vida sofria para se deslocar -- seus passos eram cada vez mais raros, e a preocupação de quem o cercava era evidente todas as vezes em que ele se levantava.

Nos longos anos de confinamento na prisão de Robben Island, marchas na cela de 2 m x 2 m e corridinhas sem sair do lugar ajudaram-no a manter a sanidade mental.

Libertado em 1990, saiu caminhando da prisão com o braço direito estendido e o punho fechado, a marcha lenta como poderoso gesto político. Não por acaso, "Longo Caminho para a Liberdade" é o título de suas memórias.

Por duas vezes, num intervalo de poucos meses, presenciei a insistência de Mandela em continuar caminhando, apesar da idade avançada.

Em outubro de 2008, já com 90 anos, ele apareceu em frente à casa da mulher, Graça Machel, em Maputo (Moçambique), para dois minutos de uma "photo opportunity" com a imprensa brasileira após reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Chegou apoiado numa bengala no lado direito e no próprio Lula no esquerdo, para dizer que estava honrado pela visita: "Até porque, na minha idade, deveria estar cavando uma cova para mim".

A frase, que parece autopiedade, é autoironia, outra de suas características famosas. "Se quiserem, posso me sentar no chão", propôs aos fotógrafos, sabendo que prometia o impossível. E riu, assim como sua mulher, Lula, seus seguranças e as cerca de 20 pessoas ali presentes.

A dentição perfeita, a audição satisfatória (com ajuda de um aparelho) e a voz grave ainda firme não indicavam um homem quase centenário.

O problema realmente era o caminhar e, em medida menor, a visão. "Sem flashes", alertara um de seus assessores. Culpa dos anos quebrando pedras brancas na prisão, desprotegido da luz solar.

Naquela tarde, ao se virar para voltar para a casa, dessa vez apoiado apenas no braço da mulher, Mandela salvou Lula de perguntas incômodas e do ataque de gravadores e microfones. Seu penoso deslocamento teve efeito paralisante sobre todos.

Um ano mais tarde, a reação à sua presença não foi hipnótica, mas histérica, e não de 20 pessoas, mas de 40 mil.

Num domingo ensolarado de abril de 2009, ele surgiu num carrinho de golfe, numa "surpresa" muito bem arquitetada pelo partido em que fez sua história, o Congresso Nacional Africano. Era o comício final da campanha presidencial de Jacob Zuma, que acabaria se elegendo.

O palco foi o mesmo estádio de Ellis Park, em Johannesburgo, em que 14 anos antes Mandela entregou a taça de campeão mundial aos grandalhões brancos da seleção sul-africana de rúgbi --imagem emblemática do caminho de reconciliação que o país começava a percorrer.

A presença de Mandela não fora anunciada no evento para o público. Mas Zuma, um populista que já foi julgado por estupro e acusado de corrupção, precisava lustrar a imagem. Mandela, convocado pelo partido, apresentou-se disciplinadamente.

Seu esforço sobre-humano dissipou-se com a acolhida barulhenta da multidão surpreendida pelo carrinho subindo um túnel de acesso ao gramado, com Zuma e Mandela sentados lado a lado.

Centenas de jornalistas atropelaram-se por uma visão privilegiada do líder, enquanto Mandela, extasiado, dava uma volta olímpica, dentro do carrinho, acenando para as arquibancadas.

O veículo parou na base da escadinha que levava ao palco. Escada, e não uma rampa, num descuido inexplicável de protocolo que acabou sendo revelador da adoração que Mandela inspirava.

A demorada escalada dos dez degraus foi acompanhada no telão pela plateia dando gritos de incentivo. O que parecia um gol festejou sua chegada ao topo. Sentado sob um toldo, Mandela só se levantou para ir embora, uma hora depois, sem discursar.

Era assim mesmo com Mandela no final da vida. Sua aparição era suficiente para ofuscar a presença de um Lula ou o discurso de um Zuma, figuras carismáticas que, em circunstâncias normais, são o centro das atenções.

Não foram poucos os seus defeitos, do pavio curto à desorganização de seu governo. Mas Mandela morreu uma figura endeusada, a quem tudo se perdoa. O frenesi do velhinho caminhando de forma vacilante podia calar --ou levar ao delírio-- multidões.


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