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Depoimento

Digo a mim mesmo que as imagens que vejo são ficção

De repente foi como se descobrisse que a vida que surpreende para o belo apunhala

EROS GRAU ESPECIAL PARA A FOLHA

Caminhávamos pela "primeira quadra" -como se diz na minha terra. O primeiro quarteirão da rua principal, a "doutor Bozano". A rua que desemboca na praça, onde em noites não tão frias as moças passeavam em um sentido, os rapazes pelo lado oposto, como que compondo um carrossel. Era em Santa Maria, minha terra.

Eu a deixara menino, pequeno. Mas voltávamos sempre, embora nunca mais de uma vez por ano. E sempre que ia a Santa Maria, com o pai e a mãe -como se diz na minha terra- eu me sentia voltando, retornando ao começo.

Certo dia bem no início dos anos 1950, caminhávamos pela "primeira quadra". Meu pai encontrava velhos amigos e, apontando-me, dizia: "Este é o Eros Roberto, meu filho". Sorríamos e o guri que eu era sentia-se firme no mundo.

Santa Maria que deixei tão cedo. Por isso mesmo, talvez, com vontade de voltar. Vontade de recuperar imagens, vozes, gestos. Coisas da década dos 1940, meu avô Justino descascando-me laranjas e fazendo, nos seus ventres aloirados, pocinhos bem marcados.

O tempo vai passando e, nesse ir-se indo, leva pessoas, sopra memórias. Guardo-as cuidadosamente, de modo que, se hoje passeasse pela "primeira quadra", lá as encontraria. Seria tão bom, como se em meu tempo de menino, caminhar agora por ali, encontrar amigos do pai, olhar as moças na praça.

De quando em quando vêm notícias da minha terra. Falo ao telefone com os primos, prometo de repente aparecer. Vamos logo nos ver -garantimo-nos uns aos outros.

Assim fluía o tempo, a areia escorrendo docemente na ampulheta, até que meu sonho de menino foi bruscamente interrompido.

De repente foi como se aquela fumaça me envolvesse, acordasse sufocado e descobrisse que -mais do que frágil, passageira, inconsistente- a vida que surpreende para o belo repentinamente apunhala. Um punhal cravado em nosso peito.

Não quero ver as imagens que passam no vídeo. Digo a mim mesmo que é ficção. Não estou a fim de assistir filmes de mau gosto. Procuro mudar de canal, penso ligeiramente em um livro que ando a ler, sobre universos ocultos. Isso não há de ser real, digo a mim mesmo. Há de estar acontecendo em outro mundo.

Não obstante, lá está, de verdade, a realidade. O guri em mim envelhece. As lágrimas em meus olhos já não são como as que os alcançam quando enlaço ternuras de minha cidade. Agora é como se eu a abraçasse, trazendo-a para mais perto de mim, e nos uníssemos ainda mais sob essa enorme tristeza.


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