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A minha Copa

As memórias de autores sobre uma copa e sua época

Aprendi que era possível morrer de prazer

Em 1958, a seleção levou torcedores a um orgasmo que durou semanas

POR RUY CASTRO

Aos olhos de hoje, é como se a Copa do Mundo de 1958, disputada na Suécia --a primeira que o Brasil venceu-- tivesse sido jogada em segredo. Afinal, como assisti-la se a TV praticamente não existia?

Na época, mesmo nos EUA, a televisão se limitava a três ou quatro canais por cidade. Na Europa, era pior ainda: só existia um canal --ainda por cima, estatal-- por país. E nenhum deles chegava até nós, porque não havia o satélite. A URSS acabara de lançar o Sputnik, primeiro satélite da história, mas a ideia de usá-lo para transmitir futebol era tão absurda quanto imaginar um romance entre Marilyn Monroe e o premiê Kruschov.

O videoteipe também já fora inventado, mas não era de uso corrente, e os jogos continuavam a ser filmados com película, o que envolvia laboratório, revelação, copiagem. Era quase proibitivo filmar uma partida inteira. E, ainda que se fizesse isso, só se usavam duas ou três câmaras. O filme era mandado de avião para o país interessado --o que, no nosso caso, dependia da cortesia dos comandantes da Varig ou da Panair--, para ser exibido no cinema ou na TV.

Poucas famílias tinham televisão --o que não lhes faltava eram televizinhos. E a transmissão era horrível --para melhorá-la, aplicava-se um chumaço de Bombril à antena sobre os aparelhos de, no máximo, 21 polegadas.

Pois, com toda essa precariedade --acredite ou não--, cada brasileiro de 1958 acompanhou aquela Copa como se estivesse na Suécia, à beira dos gramados onde Didi, Garrincha, Pelé e seus companheiros seriam campeões do mundo. E como fizemos isso?

Pelo rádio. Todas as grandes estações mandaram seus homens para a Suécia e a todo momento eles transmitiam boletins sobre a seleção. Waldir Amaral, Jorge Curi, Oduvaldo Cozzi, Luiz Mendes, Edson Leite, Fiori Gigliotti, Pedro Luiz, Geraldo José de Almeida e outros faziam transmissões inesquecíveis.

Pelos jornais. Os matutinos tinham de esperar até o dia seguinte, mas os vespertinos, como "O Globo" e a "Última Hora", tiravam edições logo ao fim da partida e traziam uma descrição minuto a minuto do jogo --como a internet hoje. As radiofotos eram atrozes e mal se identificava alguém na imagem, mas as legendas diziam o que precisávamos saber, e nossa imaginação fazia o resto.

Pelas revistas. "Manchete Esportiva" saía às segundas-feiras --o rádio ainda estava quente do jogo--, com os grandes textos de Ney Bianchi, fotos idem de Jader Neves, seus enviados especiais, e crônicas de Nelson Rodrigues. Era imperdível.

Pelo cinema. Três ou quatro dias depois da partida, o filme com trechos do jogo chegava ao Brasil e passava nos cinemas. Ainda não havia o "Canal 100", mas o ótimo "Esporte na Tela".

Na tela de 16 m x 22 m, os jogadores correndo em campo ao som de "Boogie Blues", com Ray Anthony e sua orquestra, ficavam maiores do que a vida.

E pelas ruas. À medida que atropelamos a Áustria (3x0), encaramos como gente grande a Inglaterra (0x0) e massacramos a URSS (2x0), o Brasil foi se apaixonando pela seleção. As vitórias seguintes (1x0, contra o País de Gales, 5x2, contra a França, e o consagrador 5x2 final contra a Suécia) culminaram um orgasmo de semanas, amplificado pelos alto-falantes que transmitiam os jogos em todas as praças do país, os muitos gritos de gol, as chuvas de papel picado, o Carnaval em junho.

Eu vivi tudo isso, ninguém me contou. Aos 10 anos em 1958, em casa, atracado ao rádio, aos jornais e às revistas, e, nas ruas, em meio à euforia nacional, aquela Copa me ensinou que, sim, talvez fosse possível morrer de prazer.


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