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Diário em quadrinhos une vida repartida de Jerusalém
Em crônicas breves, Guy Delisle revela nuances de conflito no Oriente Médio
Canadense é casado com ativista da ONG Médicos Sem Fronteiras e já usou humor para retratar China e Coreia do Norte
Em 2 de julho de 2008, um operário palestino arremessou uma escavadeira contra um ônibus e alguns carros, matando três pessoas, segundo a polícia. De todos os conflitos recentes no Oriente Médio, é desse que Guy Delisle, 47, mais se lembra ao pensar nos caminhos que o levaram a Jerusalém.
O canadense acaba de lançar no Brasil "Crônicas de Jerusalém", diário em quadrinhos de suas aventuras por lá, em que relata como a sociedade local parece se adaptar ao estado de tensão -meses depois do episódio descrito acima, Delisle se assustou ao ver na rua uma escavadeira, mas a cidade à sua volta parecia nem lembrar.
Ele registrou a vida na cidade sagrada entre agosto de 2008 e julho de 2009, quando sua mulher, Nadège, foi convocada para administrar um hospital da ONG internacional Médicos Sem Fronteiras na Faixa de Gaza.
A família se mudou para a parte oriental e muçulmana de Jerusalém, onde faltam calçadas e o lixo se acumula à espera do poder público.
Art Spiegelman já havia descrito os horrores do Holocausto em "Maus", Joe Sacco relatou o sofrimento árabe em "Palestina", mas enquanto o primeiro faz um acerto de contas com o passado e o segundo viaja em busca de uma história documental, Delisle se propõe a viver em mundos distintos.
VIAGENS INSÓLITAS
Ao se perder por Jerusalém, ele viu mulheres muçulmanas frequentarem supermercados bem abastecidos de colonos judeus em território palestino, e israelenses que vão ao bairro árabe instalar janelas de plástico em seus carros, tentando se proteger de atiradores de pedras que tentam intimidá-los.
"Meus livros são como grandes cartões-postais que mandaria para a minha família, contando como é aquele lugar e como são as pessoas de lá", diz.
Não se trata, porém, de um manual de etiqueta para zonas de conflito. A Jerusalém de Delisle ri de si mesma, é a visão de um pai que atravessa os escombros de um confronto histórico para levar os filhos, então com oito e dois anos, à escola. No caminho, ele observa e desenha.
"Um documentário mostra que há um muro dividindo árabes e israelenses. Um relato em quadrinhos pula o muro e olha de forma particular o que há de cômico e sincero de ambos os lados."
Há dez anos, ele documenta as sutilezas que convivem com paranoias antiterroristas e regimes de exceção. Já contou como é viver sob o comunismo na Coreia do Norte e na capitalizada cidade chinesa de Shenzhen, ao trabalhar como supervisor em estúdios de animação. Noutro livro, partilhou sua mudança com a família para o misterioso Mianmar, antiga Birmânia.
A última obra foi escrita já em sua casa, na cidade francesa de Montpellier.
Em 2012, "Crônicas de Jerusalém" ganhou o prêmio principal do Festival de Angoulême, na França -espécie de Cannes dos quadrinhos.
Delisle planeja agora fazer reportagens em quadrinhos para ONGs, levando ao desenho a busca pela tolerância. Mas, como ouviu de um comerciante de Jerusalém Oriental, "sempre há fronteiras".