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Crítica analisa literatura de perversos e libertinos

Especialista em Sade, professora da USP Eliane Robert Moraes reúne ensaios

Apollinaire, Nabokov, Bataille e Breton estão entre os escritores interpretados em livro sobre erotismo na ficção

PAULO WERNECK EDITOR DA "ILUSTRÍSSIMA"

Ela só pensa naquilo. Depois de dedicar um livro à obra do marquês de Sade, a professora de literatura na Universidade de São Paulo Eliane Robert Moraes reúne quase 25 anos de leituras na coletânea de ensaios e artigos "Perversos, Amantes e Outros Trágicos".

No foco, estão os autores das vanguardas francesas, sobretudo os surrealistas, que enxergaram valor literário em escritores "malditos", até então relegados aos porões das bibliotecas, como o marquês de Sade (1740-1814).

Essa turma da pesada --Apollinaire, Bataille, Breton Blanchot-- não só leu e cultuou Sade, mas também levou adiante as suas experiências literárias radicais em obras-primas como "Nadja" e "História do Olho", que Eliane traduziu.

O recorte do livro é aquilo que a autora chama de "erótica literária", que pode ser definido mais como uma "visada" do que pela mera presença de sexo na narrativa. Nada a ver, portanto, com a recente tendência mercadológica de best-sellers eróticos, nem a temática sexual de autores de qualidade como Philip Roth ou Reinaldo Moraes.

"A erótica é um modo de pensar", disse a professora em entrevista à Folha, em seu escritório em São Paulo. E é esse modo de pensar, caracterizado pelo desvio, que une autores como Vladimir Nabokov ou Bataille.

"É difícil a gente tomar um autor como Sade como entretenimento erótico", diz ela. "É uma literatura que gera sentimentos e sensações muito agudos. Mexe muito com seu corpo, sim, dá arrepios, mas não entretenimento."

Segundo Eliane, o objetivo dessa literatura é "deslocar o leitor", tirá-lo da "de uma zona de conforto" e levá-lo a "zonas mais obscuras da nossa humanidade, o que só a arte pode nos dar, para evitar com que a gente pratique essas obscuridades".

Nesse exercício crítico, até mesmo textos com insuspeitada carga sexual podem servir ao olhar libertino. Ao comentar a obra de Goethe, Eliane escreve que "até mesmo as apologias do amor romântico são, de alguma forma, cotejadas com seu avesso, como se houvesse sempre um olho libertino à espreita".

Mas se a questão é menos a descrição de uma cena sexual, e mais o olhar, o leitor libertino acaba fadado a ver libertinagem em tudo?

"Você tem erotismo em toda a literatura ou quase toda. Mas quando é que você diz que um livro é erótico? É que o livro da erótica literária sexualiza tudo. A gente tem uma expressão brasileira que eu adoro, só pensa naquilo'", explica, rindo.

"O objetivo era botar esse olho libertino operando. Ela vai operar, vai entrar na cela da Sóror Juana Inés de la Cruz, na apologia do amor solar do Octavio Paz, até nas Afinidades Eletivas' de Goethe", explica.

Mas por que, então, obras tidas como eróticas ou pornográficas não se enquadram nessa definição de "erótica"?

Para explicar, ela se vale de um brasileiro, o cultuado romancista Reinaldo Moraes, e de um dos maiores clássicos do gênero, Nabokov.

O segredo, muitas vezes, não é tanto narrar o sexo, mas deixá-lo em suspensão. "Em Pornopopeia' [de Reinaldo Moraes], toda página tem uma cena de sexo, mas não é um romance erótico, é um romance sociológico, no melhor sentido", diz.

"Já Lolita' [de Vladimir Nabokov] não tem nenhuma cena de sexo, e é muito erótico. Você não tem acesso à cena de cama do [narrador] Humbert Humbert com a Lolita. Ele diz assim: Em três minutos, nós nos tornamos tecnicamente amantes'. E pronto. E o livro inteiro fica pulsando essa potência."

Outro exemplo de cena de forte carga erótica, mas que "não tem nada de imediatamente sexual" vem de Sade --de "Os 120 Dias de Sodoma" (escrito em 1785, publicado em 1904), tema de um dos textos de "Perversos, Amantes e Outros Trágicos":

"Um grande devasso adora dar bailes, mas sob um teto preparado que desaba quando o salão está cheio, provocando a morte de quase todos os presentes. Se vivesse sempre na mesma cidade, seria descoberto, mas muda com frequência, de forma que só costuma ser descoberto depois do quinquagésimo baile".

"É cosa mentale'", resume Eliane. "Já não precisa mais da cena sexual, da descrição, é totalmente fantasmática. Erotismo é fantasia. A literatura erótica é a fantasia da fantasia."


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