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Tempestade no deserto

Primeira diretora a rodar longa de ficção na Arábia Saudita conta o desafio de filmar em meio à linha-dura religiosa do país

LUISA PESSOA DE SÃO PAULO

De tempestades de areia ao machismo. Foram diversos os obstáculos que Haifaa Al Mansour teve de superar para ser a primeira mulher a rodar um longa de ficção na Arábia Saudita.

O resultado da empreitada, "O Sonho de Wadjda", ganha pré-estreia hoje em São Paulo, com a presença da diretora de 38 anos, e reflete as mudanças que estão em curso em um país conhecido pelo conservadorismo.

O filme chega aos cinemas brasileiros no próximo dia 3.

Wadjda é uma pré-adolescente que sonha em ter uma bicicleta para poder brincar com o amigo e vizinho Abdullah. O problema, que parece simples, ganha contornos de desafio em um país onde, em 2002, 15 meninas morreram em um incêndio numa escola de Meca após a polícia religiosa tê-las impedido de sair sem o véu do prédio em chamas.

São muitos os controles que rondam as mulheres no país: elas precisam da autorização de um homem para viajar, ter algum trabalho remunerado ou cursar o ensino superior. Dirigir também é proibido, embora a permissão esteja sendo analisada pelo conselho consultivo Shura, que tem o papel de aconselhar o governo a respeito de novas leis.

Dessa maneira, andar de bicicleta não é uma atividade de meninas que prezem por sua honra.

Dos pais, Wadjda não pode esperar o presente. Sua mãe anda preocupada com o fato de o marido estar buscando uma segunda mulher, e o pai nunca está em casa.

É quando é divulgado em sua escola um concurso religioso com prêmio em dinheiro --o suficiente para a compra da bicicleta. Até então alheia e relutante a assuntos religiosos, Wadjda deve enquadrar-se no comportamento esperado de uma garota devota para vencer a disputa.

CENSURA

Como foi possível filmar uma história com esse conteúdo em um país onde há censura? Na Arábia Saudita, afinal, os meios de comunicação devem obedecer diretrizes buscando a "purificação" cultural de uma informação antes que ela venha a público.

Além disso, o país também possui um corpo religioso --a Comissão para a Promoção da Virtude e a Prevenção do Vício-- responsável por delimitar o padrão ético nacional. A instituição controla as atividades culturais e pode ordenar prisões e outras punições aos comportamentos considerados antiéticos.

POLÍCIA NO SET

Em entrevista à Folha por e-mail, a diretora explicou as dificuldades: "Enviamos toda a papelada e conseguimos as aprovações necessárias. A polícia aparecia com bastante regularidade no set para ver se tínhamos as autorizações, mas depois nos deixava em paz".

Não só a polícia ficou incomodada. Nas regiões mais conservadoras, a equipe comandada por Al Mansour sofreu ameaças. Em algumas ocasiões, ela teve que dirigir os atores à distância, de uma van e pelo celular."Apesar disso, a maioria das pessoas só estava curiosa e animada em ver algo novo acontecendo nas redondezas."

Às dificuldades culturais somou-se uma tempestade de areia durante as gravações.

Para Al Mansour, foi essencial que a história de Wadjda fosse filmada na Arábia Saudita, em Riad, a capital. "Eu queria que os sauditas tivessem a oportunidade de ver suas vidas na tela e ter uma história que fosse autêntica e próxima deles."

TRAJETÓRIA

A tranquilidade da diretora parece ser o resultado de uma trajetória calejada: "Meu pai costumava receber cartas de familiares, de amigos e do imã da mesquita em frente a nossa casa pedindo-lhe que me mantivesse sob controle, que ele desse um basta' a minha carreira como diretora. Mas ele e minha mãe nunca ligaram para o que as pessoas pensavam sobre mim".

A relação de Al Mansour com o cinema começou na infância. Seu pai costumava exibir para ela e seus 11 irmãos filmes em VHS ("Talvez para manter todos nós quietos!"), como antigos filmes egípcios e produções de Bollywood.

Mas o interesse pelo cinema começou depois de ela assistir a produções dos Estados Unidos. "Respeito os filmes americanos, mesmo aqueles ruins, porque eles realmente entendem as emoções. Eles tiveram uma grande influência sobre mim", relata.

Apesar dos inúmeros controles, a situação feminina na Arábia Saudita começa aos poucos a mudar.

Em janeiro, o rei Abdullah bin Abdulaziz al Saud e os líderes religiosos do país decidiram que as mulheres terão de compor sempre um quinto das 150 cadeiras da Shura.

Em 2011, já houvera a decisão de que elas poderiam votar e concorrer nas eleições locais de 2015.

No ano passado, pela primeira vez, mulheres representaram o país em uma Olimpíada e foi implementada uma lei que autorizava a mão de obra feminina em lojas de lingerie e cosméticos.

Por fim, no início de abril deste ano, a Arábia Saudita passou a permitir que mulheres andem de bicicleta --não se sabe até que ponto por influência do filme de Al Mansour--, mas apenas em áreas destinadas ao lazer e com um guardião masculino.

ANTENAS PROIBIDAS

Al Mansour ainda não sabe se o filme será exibido em seu país, onde há restrições ao funcionamento de cinemas.

Muito do contato da população com filmes vem de DVDs e da televisão via satélite, o que tem trazido dificuldades ao governo para controlar o fluxo de imagens e informações estrangeiras que chegam ao país. A venda, a instalação e o uso de antenas de recepção de satélite são proibidos, o que não impediu sua disseminação.

Os sauditas também usam mecanismos que permitem o download de filmes estrangeiros pela internet.

Apesar da leve rebeldia da protagonista Wadjda, Al Mansour não considera o seu filme "contra o sistema".

"O filme é menos uma crítica ao sistema e mais às pessoas que acham que são impotentes para mudar o lugar onde vivem. A conformação é um caminho mais fácil; já a rebeldia pode ser difícil, mas é muito mais compensadora."


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