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Autor cria romance em reação a AVC

Pernambucano Raimundo Carrero inspirou-se na protagonista do seu livro para enfrentar sequelas do problema

Escritor apaixonou-se por sua personagem; com os movimentos debilitados, ele ditou o início da história

MARCO RODRIGO ALMEIDA ENVIADO ESPECIAL AO RECIFE

"Tangolomango", o novo romance do pernambucano Raimundo Carrero, tem só 128 páginas, mas cada uma delas exigiu um esforço, físico e emocional, sem precedentes nos quase 40 anos de carreira do escritor.

A "via crucis" do escritor começou em outubro de 2010, quando sofreu um AVC (acidente vascular cerebral), dois meses depois de vencer o Prêmio São Paulo de Literatura pelo romance "A Minha Alma É Irmã de Deus".

Depois de 15 dias internado, voltou para casa com o braço e a perna esquerdos parcialmente paralisados e a fala comprometida. Só conseguia se mover com a ajuda da mulher, Marilena, ou de enfermeiras que se revezavam para cuidar dele.

Tudo isso Carrero, 65, suportou com relativa sobriedade e, na medida do possível, o bom humor que lhe é característico. A possibilidade de nunca mais voltar a escrever, contudo, o exasperava.

Ele até ensaiou o início de um diário sobre sua recuperação, batizado de "Às Vésperas do Sol" e ainda hoje inconcluso, mas a dificuldade para escrever era tanta que muitas vezes nem ele mesmo entendia a própria letra.

O autor experimentou novamente o gosto da publicação em meados de 2011, com o romance "Seria uma Sombria Noite Secreta", concluído pouco antes do AVC. Faltava descobrir o principal para um romancista apaixonado por sua profissão: teria condições, físicas e psicológicas, de voltar a fazer ficção?

"Se não tivesse, acho que já estaria morto. Ou louco", disse Carrero à Folha na sala de seu apartamento, no Recife, no início do mês.

Dois anos e meio depois do AVC, parece mais vivo do que nunca. Quase 30 quilos mais magro, anda serelepe pela casa, troca de roupa e se alimenta sem precisar de auxílio, sai sozinho pelas ruas e voltou a dar suas célebres aulas de criação literária.

Braço e perna esquerdos ainda não estão totalmente normais; nada, todavia, que impeça as tarefas do dia a dia.

A expressiva melhora ele atribui a Deus, à mulher, ao tratamento médico e a Guilhermina --a velha protagonista de "Tangolomango".

Guilhermina apareceu brevemente em um romance anterior do autor, "O Amor Não Tem Bons Sentimentos" (2008). Era descrita como uma mulher carinhosa, que cuidava e dava banho no sobrinho, Matheus.

Carrero buscou na generosidade e no despudor da personagem o alento para enfrentar sua convalescença. Um pouco mais que isso: apaixonou-se perdidamente por ela. "Ela deitou e rolou comigo. Queria que os leitores amassem a Guilhermina com o mesmo amor que eu", diz.

No êxtase de sua criação, mas sem condições físicas para levá-la a cabo, começou por ditar o livro a sua terapeuta ocupacional, Elaine Cristina de Lima, em março de 2011.

Dez páginas depois, o cioso escritor não quis mais intermediários em seu relacionamento com Guilhermina e tratou ele mesmo de digitar sua história, sempre com o dedo indicador da mão direita.

"Tangolomango" narra um dia na vida de Guilhermina, mas não um dia qualquer. Estamos no Carnaval recifense e a mulher madura e solteirona vai para os blocos de rua em busca da liberdade que reprimiu por toda a vida.

"Por não ter mais nada para fazer, me dediquei totalmente ao livro. É meu grande romance. Além disso, há a minha Guilhermina...", conta, quase num suspiro.

Tangolomango, explica ele, expressa uma ideia de festa, confusão, morte, delírio. Bem poderia ser o título de qualquer outro dos mais de dez romances que já publicou. Todos eles são povoados por loucos, vagabundos, bêbados, incestuosos, prostitutas e assassinos. "Sou excessivo. Minha obra é sem dúvida o meu retrato", assume.

Carrero costuma dizer que regou o próprio AVC. Por anos sua explosiva rotina misturava noites em claro em bares e cabarés, poucas horas de sono e comida em excesso. Tudo regado com ao menos um litro diário de uísque ou cachaça.

Por contraditório que possa parecer, o vício pela farra só é comparável a outro, o pela religião. É assim que enxerga um sentido para sua provação. "Deus quis me ensinar a viver, me dar um freio. Agradeço a Ele todo dia. O AVC foi um prêmio."

Mudanças em seu comportamento nesses últimos dois anos, segundo amigos e parentes, foram nítidas. Marilena, sua mulher, "diz que ele está mais lúcido, mais centrado e mais afetuoso".

O escritor Ariano Suassuna, a quem Carrero chama de mestre, saúda o novo livro como uma obra de grande importância. "Ele venceu qualquer falha que o AVC tivesse causado na mente e no corpo dele, e reaparece no Tangolomango' aquele mesmo escritor de raça, capaz do sonho, capaz de recriar o real", comentou, por escrito.

O "novo" Carrero só quer tranquilidade. Lamenta apenas não poder beber. "Mas não vou me angustiar não. Quero é escrever, me curar e ser feliz." Como a musa Guilhermina, está se guardando para quando o Carnaval chegar.


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