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Crítica - Romance

Com narrador paranoico e texto maçante, livro carece de trama

RODRIGO GURGEL ESPECIAL PARA A FOLHA

No centro de "As Pequenas Mortes", de Wesley Peres, encontramos o drama das pessoas que, em 1987, na cidade de Goiânia, foram contaminadas pelo césio-137.

Mas tal acidente apenas desencadeia as vozes que compõem o narrador, Felipe Werle, um paranoico capaz de se expressar em primeira ou terceira pessoa, para quem o câncer não é doença, mas a melhor definição do homem.

O delírio comanda o livro. E não poderia ser diferente, já que o narrador sofre de sério problema psíquico. O discurso solipsista, descontínuo e lacunar, repleto de paradoxos e diversionismo, repisa, página a página, as obsessões de Werle.

São elas: a certeza de estar contaminado pelo césio; o corpo visto como impedimento e tortura; a imagem de Leide, menina que se tornou símbolo da tragédia goianiense; Ana, a mulher que talvez tenha conhecido na infância e por quem afirma estar apaixonado.

Felipe Werle é um paranoico culto, leitor de Georges Bataille e Emil Cioran, apresenta-se como compositor e professor de música, além de mostrar segurança no uso da linguagem, utilizando, inclusive, termos linguísticos e psicanalíticos.

LIMITES

Esses elementos conduzem o leitor a um terreno pantanoso, o que o obriga a ler com desconfiança crescente.

Afinal, se a verdade é a última coisa que se pode esperar da ficção, quanto mais do relato de um paranoico que busca não tornar realista o irreal, mas, desmentindo-se, mentir sempre --e assim testar os limites dos seus próprios jogos de linguagem.

A paranoia acorrenta o narrador aos delírios interpretativos e o obriga a dar importância excessiva a determinados fatos --o que torna o texto maçante.

Mas, além de se prender a alguns poucos acontecimentos, Werle tece reflexões metalinguísticas e chega a incorporar a angústia de semiólogos e semioticistas em relação à suposta ineficácia do verbo ser.

Também se faz presente o batido discurso do narrador que, a partir de certo ponto, diz não saber mais se está falando verdades ou mentiras. De forma curiosa, Werle afirma que não deseja fazer metaficção, mas "metaficcionar-se", isto é, "registrar a construção de algo que eu possa chamar de minha história e tomar distância disso".

Ora, recorrer, de forma exagerada, insistente, a tais artifícios, permite o surgimento de expressões monstruosas, como "maquiagem maquiando" e "oráculo oracula"; e, o principal, expõe ainda as intenções do autor do livro, denuncia o mecanismo subjacente à narrativa.

"As Pequenas Mortes" sintetiza, assim, parcela da narrativa contemporânea: aferrada à valorização extrema do "eu", incapaz de referir-se ao outro --ou, quando o faz, transformando-o em mero objeto--, preocupada em realimentar seu niilismo, adepta de fórmulas de expressão herméticas e certa de que vocabulário chulo e malabarismos linguísticos podem substituir uma trama.

Contudo, talvez não seja possível outro discurso realmente paranoico... Nesse caso, o livro fará a alegria dos lacanianos.


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