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Uma cara para Cristo

O artista plástico brasileiro Jonathas de Andrade fotografa homens comuns da Jordânia em busca de um novo rosto para Jesus que seja mais adequado à sua origem

SILAS MARTÍ DE SÃO PAULO

Ele já foi retratado com e sem barba, mais doce ou um tanto rude, de olhos angulosos ou arredondados, com cabelos castanhos e até loiros, mas nunca como um homem árabe vivendo no deserto.

Nas ruas de Amã, capital da Jordânia e parte da antiga Judeia, onde Jesus Cristo nasceu há mais de 2.000 anos, o artista brasileiro Jonathas de Andrade saiu à procura de um modelo mais "fidedigno" para representar na arte o homem que cristãos consideram ter sido o filho de Deus.

"Parti do princípio que o Jesus de onde eu venho é loiro e de olhos azuis, quando na verdade ele nasceu e andou por essa região. Quis atualizar a imagem dele, ou seja, criar um Jesus árabe", diz Andrade.

Em outubro passado, o artista fotografou com o celular homens que via pelas ruas de Amã, de policiais a taxistas.

Eles não posavam para a câmera. Eram flagrados como que estavam, como se catalogados para um estudo antropológico de tipos físicos.

Quase todos têm a pele escura, queimada pelo sol, traços árabes e asiáticos, o nariz mais largo e os cabelos sempre pretos e crespos.

Na descrição do artista, eles são "silenciosos, observadores, frágeis, de pele escura e cheios de vitalidade", mais ou menos da mesma forma como pensou o arquétipo do homem do Nordeste.

Em seu último grande projeto, mostrado na Bienal de Lyon e na galeria Vermelho, em São Paulo, Andrade, que é alagoano radicado no Recife, retratou uma série de homens para ilustrar um possível cartaz para o Museu do Homem do Nordeste, questionando estereótipos do nordestino, sempre caracterizado como trabalhador rude.

No caso dos candidatos a Jesus, Andrade decidiu exibir os retratos no Darat al Funun, um centro cultural de Amã, e pediu ao público da mostra, em cartaz até abril, que votasse no melhor rosto para encarnar o novo Jesus.

Nem ele sabe quem está ganhando. "O vencedor nunca é apresentado", diz o artista, que deve trazer a mostra ao Brasil no ano que vem. "O projeto acontece nessa iminência, na expectativa. Só a ideia de haver novos candidatos a Jesus já perturba as pessoas. Ninguém aceita direito os homens que escolhi."

Talvez porque nenhum deles em nada se assemelha à fisionomia de Jesus cristalizada no imaginário popular.

Mesmo esse Cristo de "rosto oval, olhos amendoados, nariz alongado, lábios firmes, cabelos partidos ao meio de forma simétrica e barba asseada", na descrição de Martin Kemp, britânico que virou uma das maiores referências em estudos iconográficos, não tem a ver com a provável aparência real de Jesus.

"Determinar a aparência dele é complicado, porque José, seu pai, não tem nada a ver com isso, nem a Virgem, que teria concebido o filho por intervenção divina", diz Kemp à Folha. "No campo da religião, Jesus não pode ser atrelado a nenhuma raça."

HIPPIE

No campo étnico, cientistas já tentaram determinar uma possível face de Jesus a partir de estudos arqueológicos de ossos de homens que viveram na Judeia na época. O resultado, que estampou capas de revistas há pouco mais de uma década, chocou.

Isso, pelos mesmos motivos que a mostra de Andrade agora causa polêmica em Amã: o Jesus "real", de cabelos crespos, nariz achatado e traços rudes, em nada lembra o apolíneo de Michelangelo, do século 16, ou sua representação delicada criada por Rafael na mesma época.

"Ele teria aquela cara tendo nascido na Judeia? Arte não é documento, é imaginação", diz Teixeira Coelho, curador do Masp, que tem um acervo rico em representações de Cristo, uma delas do próprio Rafael. "Na Itália renascentista, havia modelos loiros, aloirados, morenos."

Enquanto no sul da Europa e em representações bizantinas Cristo aparece mais moreno, o norte foi criando tipos cada vez mais arianos.

Um autorretrato do alemão Albrecht Dürer, pintado em 1500, acabou informando boa parte da iconografia cristã nos países nórdicos --imagem que foi reforçada, segundo Kemp, na Alemanha nazista e ao longo do século 20 "pela obsessão de Hollywood pelas divas loiras no cinema".

"Esse é um Cristo hippie", diz Luiz Marques, historiador da arte e professor de história medieval na Unicamp, sobre o Cristo loiro que domina a cultura pop. "Ninguém faria também uma análise étnica para saber como era um tipo sírio."

Cristo sempre teve a pele branca, variando às vezes entre a alvura total e tons um pouco mais bronzeados.

Negros ou árabes típicos jamais foram modelos, a não ser em imagens isoladas na arte contemporânea ou no clipe de "Like a Prayer", de 1989, em que Madonna se engraça com um Jesus negro ressuscitado.


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