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Crítica - Romance

Rogério Pereira estreia com violência da vida em família

Em 'Na Escuridão, Amanhã', autor revisita 'Carta ao Pai', de Franz Kafka

BEATRIZ RESENDE ESPECIAL PARA A FOLHA

"Na Escuridão, Amanhã" é o primeiro livro de um homem de letras, Rogério Pereira, criador do jornal literário "Rascunho" e que, segundo o autor, foi gestado durante mais de dez anos.

Não causa espanto: o texto parece mesmo ter sido extraído com dor das entranhas do romancista que se afirma já com a primeira publicação.

"Na Escuridão" é composto por duas narrativas paralelas que se entremeiam. Uma parte é a forma contemporânea da "Carta ao Pai", escrita por Kafka e que, ao que se sabe, nunca foi entregue ao destinatário.

Paralelo à carta, segue o relato da vida da família pobre de gente do campo que transfere sua miséria para a cidade devoradora. Deixar o campo é deixar a casa "útero seco" que o demônio tenta habitar. Pai, mãe e as três crianças vão para a cidade grande, o "vasto mundo que nos abocanhou, mastigou e cuspiu".

O pai violento, a mãe vitimada agarrando-se à religião, os meninos quase animais e a frágil irmã cuja morte é esperada transferem seus sofrimentos do espaço limitado e limitador para uma amplidão ainda mais hostil.

A violência da vida em família se estende da infância à chegada do sexo como mais uma forma de aspereza.

A crueza do mundo que os cerca se reproduz nas relações que mantêm até com os animais. Como o pai matava os porcos ("o grito de um porco morto é a certeza de que o inferno é possível"), os meninos, animais urbanos, matam, depenam e torturam os pássaros esviscerados com "habilidade de artífices".

A morte que ronda a casa aperta o cerco; vai-se o avô, vai-se a irmã. A morte dessa que sorria mas não era feliz é, talvez, o momento em que mais fortemente surge o belo por dentre a dor profundíssima. A menina descalça na foto, a menina que vai desaparecer das poucas fotografias.

Mas é o pai que realmente importa. Esse pai-patrão que apavora por ações e palavras, pela ironia e pelo silêncio, não deve ser esquecido. O narrador escreve para não esquecê-lo, e é a fúria que conduz a carta. "A fúria dessas cartas, dessas palavras que não silenciam, não calam, que jorram o fel contra o pai."

Também Kafka escreve ao pai que também a ele humilhava com palavras, para enfrentar o medo e o desprezo com as mesmas armas, mas termina sua "Carta" acreditando que o escrito pode tornar vida e morte mais leve para ambos. Mas não entregar a carta é manter a distância.

Em "Na Escuridão", não há perdão, não há reconciliação, porque justamente as palavras são imperdoáveis. "De que servem as palavras agora, pai, quando o que nos envolve já não significa nada?"

Se a catarse não é oferecida por Rogério Pereira ao leitor, que sua escrita lhe sirva de forma de aplacar a própria "hibris", e dessa dor tão profunda surja o escritor que o romance de estreia promete.


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