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Entrevista - Rodrigo Naves

'A ideia de que arte é vida faz com que se deixe de olhar para a vida'

EM NOVO LIVRO DE ENSAIOS E CONTOS, CRÍTICO DE ARTE DISSECA COM DESENCANTO O MUNDO ARTÍSTICO E UM COTIDIANO TOMADO POR UMA 'CALMA ATERRORIZANTE'

SILAS MARTÍ DE SÃO PAULO

Não é a fúria que mete medo. No caso de Rodrigo Naves, 60, é a calma que assusta. Depois de sofrer um aneurisma durante uma cirurgia no coração há dois anos, o crítico de arte finalizou um livro que mistura ensaios, poemas e alguns contos de ficção.

Em "A Calma dos Dias", seu segundo livro de prosa que chega agora às livrarias, Naves ataca em textos breves o que chama de "serenidade e algo de aterrorizante que existe nessa calmaria", como se depois de ver a morte de perto o mundo reaparecesse mais "cristalino", com "uma ausência de topografia".

Naves disseca o cotidiano com um desencanto arguto, das meninas que vê passar nas ruas aos excessos e bobagens da arte contemporânea, que diz ter perdido sua relevância e virado vítima de "uma avalanche teórica".

Tanto que ele afirma ver mais arte no modo de vestir das garotas do que em museus. E desvia o olhar para analisar sujeitos incomuns nos livros de arte --Michael Jackson e Gisele Bündchen.

Na visão de Naves, Jackson foi um "mártir do culto à imagem", enquanto a modelo é uma espécie de Botticelli que saltou para fora dos quadros, "majestosa e inesgotável".

Em entrevista à Folha, Naves comentou os assuntos de seu novo livro. Leia a seguir trechos da conversa.

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Folha - Seus textos no livro parecem marcados por um pessimismo muito forte. Tem algo a ver com o medo da morte?
Rodrigo Naves - Da morte eu não tenho medo. Na verdade, tenho medo de sofrer. Eu acho que é uma dimensão mais triste do que pessimista, que vem de uma mudança que eu percebo no cotidiano.
Vejo que tudo ganhou uma planura, uma ausência de topografia, como se você pudesse antever tudo e qualquer coisa. Ou seja, nenhum movimento que pareça prometer mudanças ou transformações nessa ordem, ou ameaçar essa serenidade.

Mas os protestos pelas ruas não são agito suficiente?
É como se as pessoas estivessem reivindicando uma reivindicação. Acho que houve uma certa dissonância entre o barulho que se fez, a grandeza do movimento, e o que movia isso. Há um descontentamento amplo, que é uma coisa que eu sinto, mas que você não sabe dar nome.

Num dos textos, você analisa o modo de vestir das mulheres. A moda é um novo interesse?
Quem não tem certo interesse pelo mundo, pela realidade, não encontra uma forma de ser permeável aos toques, às pessoas, às coisas e tem uma uma relação mais empobrecida com o mundo.
É uma tentativa de entender como essa moda se generalizou, de usar o top de um jeito, a cintura baixa. Quis fazer uma descrição disso tudo esperando ao mesmo tempo que um sentido surgisse dessa própria descrição. É uma relação semelhante à que eu tenho com obras de arte.

Tanto que você diz ver mais arte nessa moda do que em galerias e museus. A arte perdeu seu encanto para você?
Não sou pessimista em relação à arte contemporânea. Mas talvez por excesso de dinheiro e preços exponenciais, o sucesso comercial tenha virado um critério para determinar o que é boa arte. Isso chega a ser aflitivo.
Esse ideia de que arte é vida, tão forte hoje, também faz com que muitas vezes você deixe de olhar a vida para ver obras que falam dela, quando há pessoas na rua fazendo coisas desconcertantes, reveladoras. Estar de olhos abertos é importante.
Suspeito que as pessoas do meio têm uma relação muito teórica com a arte, e é muito difícil a teoria dar conta da obra. Essas avalanches teóricas estão em função de a arte ter perdido a relevância.

Mas quando desvia o olhar e escreve sobre Michael Jackson e Gisele Bündchen, por exemplo, você usa os mesmos raciocínios da crítica de arte. Isso é uma provocação?
É uma provocação e também uma tentativa de entender o que torna a Gisele algo deslumbrante. É criar um padrão para olhar as coisas.
Quando falo que o Michael Jackson é a "Pietà" do pós-modernismo é porque ele levou a noção de imagem às últimas consequências, ele interveio no próprio rosto em mais de 20 cirurgias. Ele é um mártir desse culto à imagem.

Mesmo assim, você vê uma audácia nele que passa ao largo dos artistas brasileiros. O que quer dizer quando afirma que eles "sofrem de Brasil"?
Há certa dificuldade de nossos cidadãos mais virtuosos serem violentos, mais impositivos. O [Alberto da Veiga] Guignard, por exemplo, mais sofria o mundo do que se impunha a ele. Ele sofre de Brasil nessa ideia de que talvez não tenhamos construído uma sociedade estruturada o suficiente para que se possa fazer um movimento forte em direção a uma realização.


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